Há 3 dias
domingo, 29 de dezembro de 2019
Enquanto troco letras, palavras, gestos que se foram, mas estiveram, enquanto estou viva, enquanto estou acordada vejo a Cassiopeia, o Oríon, vejo outras constelações que esqueci o nome. Deambulava pelo parque enquanto me mostravam cada uma, é difícil de decorar, é fácil de esquecer, a música vive enquanto escrevo, as estrelas estão lá fora, mas vi-as neste frio da noite, vi-as e relembrei todos os passos dados nas noites invernosas e claras enquanto me apontavam as constelações. Já ninguém me as diz, o passado passou, o tempo passou e as memórias ficaram retidas. Às vezes não sei o que farei a tantas memórias, às vezes é simples, elas estão lá, um sorriso pela noite, uma noite longa enquanto ninguém me obrigava a dormir e a noite passava em claro, e a noite era uma vida, cada noite especial. E os sorrisos de outrem permanecem na memória, não os revejo, mas estão comigo porque se os encontrasse iria descobrir outras constelações.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2019
[Miró]
Tenho uma cerveja gelada ao meu lado e um monte de sorrisos dos dias que antecederam, sou tão agraciada que nem sei como é possível, eu que nada fiz de especial na minha vida. Tenho calor no corpo todo dentro do casaco de pelo e do frio que me rodeia, tenho vozes que ainda não se perderam, um gesto, um afago, um sorriso. Tenho abraços, tenho um ronronar que não era de um gato, mas também peguei num gato ao colo que não era meu e pensei nos meus distantes. Tenho de os ir buscar, mas pelo seu bem estar tenho de ter paciência, eu que nunca fui dada a isso. Sempre disse, vim a esta vida aprendê-la, mas devo necessitar pelo menos mais de umas dez, eu tão impaciente. Quero os meus ao meu redor, quero cães que ainda não tenho, quero a minha vida rodeada de vida pura e entretanto luto contra a insanidade de ser sã no meio do caos que escolhi como vida. E em cada passo que dou sei que estou certa.
[Chagall]
Uns vêm, uns vão, uns permanecem. Uns querem o presente, um
futuro, e surgem, surgem de repente como se sempre estivessem lá. Outros
esquecem-no, o presente, tomam-no como garantido, usam-no, cospem em cima dos
gestos das mãos e perdem-no com a facilidade com que o obtiveram e dizem, não
era isso que queria, peço desculpa, tudo depois dos passos estarem
estraçalhados. Os que permanecem, ah!, esses, a esses chamam-se amigos.
terça-feira, 17 de dezembro de 2019
Hoje citei cem vezes o meu nome em voz alta e cheguei à
conclusão que era o mesmo de há cinquenta anos atrás. É estranho dizê-lo e não
ouvi-lo de outra pessoa, mas mesmo assim fi-lo, não o fiz em frente a um espelho,
isso seria interferir na experiência de que o nome era o meu e não o de outrem.
Hoje olhei-me ao espelho cem vezes e tentei perceber se a
imagem refletida coincidia com a do cartão de cidadão, à parte da estranha
imagem cinzenta com que nos presenteiam, descobri que sim, era eu mesma, a
Teresa, mais velha, mais cabelos brancos, com os filhos adultos, mas sim, era
eu.
As minhas mãos têm mais rugas, talvez seja a parte do corpo
que me faz confusão, nãos os cabelos ou a cara, antes as mãos. Antes tinham
muita força, levantavam as crianças, faziam várias tarefas ao mesmo tempo e
agora não, são simplesmente mãos.
Quando era miúda pensava que as minhas mãos não mostravam
trabalho e olhava-as lisas, não calejadas, sabia lá que mais tarde tudo seria
diferente. Transformaram-se em mãos que ligam aos braços, à coluna e a um passo
de cada vez.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2019
Chove, mas chove tanto que é difícil de ver o exterior. Sei
que estou quente, sozinha, mas não solitária, estou com a minha música, as
minhas palavras que para mim são a minha fala. Porque nem falo muito ou o que
falo não tem qualquer préstimo, limita-se ao razoável entre pessoas. Ainda não
consegui o meu sossego total nesta confusão de obras em casa e tanta papelada a
tratar só para que o Estado saiba onde estou, perco-me em tanta papelada
irracional que não há poesia que sobreviva, não há momentos de reflexão, não há
cinco minutos a apreciar, não há fotografias da paisagem magnífica à minha
volta. Não há nada.
Levantei-me de manhã, ter de ir à cidade é um pesadelo, eu
citadina há cinquenta anos e só pertenço ao campo há menos de um mês. Quando
era miúda e as férias de verão se aproximavam ia sempre um mês para a quinta
dos meus avós. Fazia a mala com quinze dias de antecedência e sonhava todas as
noites que lá estava. Era a liberdade total, as árvore, os animais, o cão que
tomava-o como meu. A minha avó obrigava a dizer uma prece ao anjinho da guarda,
conceito que desconhecia, mas deslizava a lengalenga e os lençóis cheiravam a
sabão lavados no tanque e corados ao sol. No início não havia eletricidade,
essa veio muitos anos depois, as sombras dos candeeiros de petróleo metiam-me
medo, mas enfiava-me debaixo das encobertas, todos sabem que debaixo delas nada
nos acontece.
Acordar e sentir o sol e o campo à minha espera, apanhar
amoras maduras, ajudar a dar de comer às galinhas e coelhos, correr por entre o
milho fingindo que me perdia e arrancar um cacho de uvas da videira era tudo o
que queria.
Quando regressava a Lisboa quase chorava, tinha sonhos
durante muitas noites que continuava a lá estar, sonhos que duravam meses e
acordava angustiada. Mas vinha a escola, os amigos e eu sempre gostei de
estudar. Adiava as saudades e ainda hoje as adio porque os tempos não
regressam.
(há quase um mês que ando a tratar de burrocracia, a minha casa nova está em obras, ando sem tempo para nada, peço desculpa a todos)
domingo, 8 de dezembro de 2019
Gosto de rever os meus, mas já não são meus. Goste de
visitar os amigos, mas também não são a minha casa. Todos temos de ter o nosso
tempo e ele não é sobrecarregado com os outros a tempo inteiro. As raízes têm
de ter tempo para ocupar o solo, saberem procurar água e nutrientes e nenhuma
outra árvore estará lá para dizer. As pedras nascem sós e vivem uma eternidade,
recolhem histórias do tempo e vivem sob o sol e a chuva, vivem com o desgaste
do vento tal como nós. Dizem que não têm vida, talvez não as tenham escutado
nem posto as mãos sobre elas para com elas conversar.
Dizem, somos diferentes disso tudo, digo, não é verdade,
pertencemos a este todo, não, simplesmente não o entendem. Não só os animais
vivos, os sencientes que há pouco tempo lhes deram importância, algo que sabia
desde que me conheço, têm de ter a nossa consideração. Uma pedra antiga é tão
viva como nós, um castanheiro fala-nos da sua vida e cada folha, cada erva tem
a sua própria existência tão igual à nossa.
Não, não me venham dizer que há uns mais iguais que outros,
Lenine disse o mesmo.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2019
Chegou ao pé de mim segurando uma muleta, outra pessoa onde
os anos pesam e o isolamento também. Os filhos distantes, certamente não a
abandonaram, mas estão longe. Recordou os seus anos vividos em África até ter
de fugir sem nada, mais uma história que ouvi de tantas. Escorreram
lágrimas, “Não pense nisso, já foi há tanto tempo!”, “Não costumo pensar, mas
quando falo não aguento”. E ouvia, as suas terras, a sua vida, a sua casa que
foi invadida.
- Volte! – Dizia-lhe o sócio – Corremos com os que se
apoderaram das suas coisas!
Mas não voltaram, como era possível? E dizia-me, só víamos
chegar militares, não paravam de vir, o meu marido ignorava e eu dizia-lhe,
anda, vamos deixar algum dinheiro em Portugal.
- Não, os bancos só nos roubam!
E ficaram sem nada como todos os outros, desprevenidos, não
acautelados apesar da senhora ter insistido.
- Trouxemos uma angolana connosco, nem sabíamos do pai dela,
ela era miúda e ficou tão entusiasmada! Demos-lhe outro nome. Gostas de
Filomena? O nome dela era tão difícil de pronunciar!
A Filomena veio e nunca quis regressar, o filho ainda lá foi
há pouco tempo, mas o tempo passa e nada é igual.
- Tínhamos gado, deve ter fugido todo.
E eu pensei, a guerrilha de certo que se apoderou dele, mas
nada disse.
- Destruíram tudo, mas a terra era deles, nós é que a
ocupámos, não deveria ter sido assim.
Não, não deveria, mas os governos fazem tudo ao contrário e
não são só os nossos!
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
(Dali)
Noutros tempos, noutros mundos, tu e eu acarinhando o tempo sem que este passasse, uma função inexistente, somente na mente dos distraídos. Noutros tempos e noutros mundos sempre juntos vivendo até ao começo do dia onde a realidade nos separaria, onde apenas nos uniríamos em versos travessos, em romances escritos só com o fim de te encontrar e em cada um que escrevo tu estás lá porque nesta vida não vieste.
terça-feira, 3 de dezembro de 2019
(às 7h30 da manhã)
Mudei-me, da cidade para o campo, de uma casa limpa para uma
cheia de obras por fazer por isso desapareci daqui. Um café pela manhã olhando
oliveiras, o frio que chega pela noite, a confusão de papéis a tratar, o Estado
adora isto e tenho a certeza que esqueci qualquer coisa apesar de todas as
listas intensas que fiz. Hoje nem sala tenho porque está tudo uma confusão, mas
felicidade de aqui estar no sossego, longe do barulho, do desassossego é tão
grande que todos esses pormenores acabam por ser indiferentes.
Não, hoje não há poesia ou textos poéticos, há uma ode às
oliveiras, aos caminhos recônditos.
- Não se isole!
Não existem telemóveis, internet? E, claro, viagens para ver
os filhos de vez em quando, ou eu ou eles. Agora eu porque aqui não consigo
receber ninguém no meio de tanta pedra caída da parede derrubada.
Porque partilho isto? Não deveria ser um assunto só meu?
Porque não o deverei se uma aventura deve ser contada e esta é uma aventura,
uns dias sem eletricidade e a velas, uma casa de banho exterior (que horror!)
enquanto as outras não são feitas, mas tudo faz parte de uma experiência de
vida e eu estou a tê-la.
Sair das grandes cidades é sair de Portugal, do Portugal que
conhecemos e é tão estranho. Claro que em breve a novidade será o quotidiano,
mas até lá vou conhecendo Portugal.
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
Chegar a casa e ter simpatia e acolhimento, não sabia que
existia. “Tome, leve um caldo verde, gosta de paio? Tenho aqui umas azeitonas
também e o horário do padeiro. Se precisar seja do que for contacte-nos, temos
de ser uns para os outros”.
Em quase cinquenta anos de vida nunca tinha ouvido tais palavras
nem tamanha hospitalidade, sim, a senhora vem conversar comigo, mas tenho paciência
para a ouvir, sempre tive tempo para ouvir anciões, têm histórias maravilhosas de
tempos idos. Têm uma certa solidão no olhar e o que é uma meia hora para mim?
Ela desceu uma rua com uma canadiana para saber se a Teresinha estava bem, para
poder ter um dedo de conversa. E dei-lhe, pouco mais posso dar a não ser o que
faz falta, companhia. E o que é uma meia hora da minha vida a gente que pede
tão pouco?
(peço desculpa a todos por não visitar as V. páginas, a minha vida parece um furacão)
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
Hoje voei
pelo campo, apanhei bagas e descansei num tronco de uma árvore. Foi um voo
afoito, procuram por mim os caçadores, os rapazes com as fisgas, os loucos.
Tenho as madrugadas para ser livre enquanto os Homens dormem, enquanto a
natureza respira. Não sei quando isto começou, perde-se a memória nas fugas,
nos esconderijos, na sobrevivência. Amanhã recomeçará tudo de novo, a espera, a
incerteza, o medo. Preciso de continuar para sobreviver, esconder-me, procurar,
não sei quanto tempo aguentarei, estou só, estou escondida.
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
O primeiro “NAVIA”, a ingenuidade de um primeiro livro que não foi revisto pela editora e nem me apercebi.
“Recortes de um país moribundo”, um livro que adorei escrever, um pouco pesado, talvez.
“O Voo da ave”, um livro histórico na altura de Martinho de Dume, sec. VI, quatro anos de pesquisa. Tive opiniões muito contraditórias.
Depois vieram três de poesia, “A fadiga das ondas”, “Teixo-Mulher”, “Passos sem rasto”, à medida que se escreve a escrita evolui. “Passos sem rasto” foi um poema para um grande amor.
Fartei-me de editoras e comecei a publicar em ebooks, Ed. Autor, as editoras nada fazem pelos escritores. Agora sinto-me livre e saíram:
- “7 espadas acima”, textos poéticos, adorei escrever, criei um universo de deuses, os “7 espadas acima” e eu e a minha cadela vivemos as páginas
- “diz-me tu, o que é o amor?”, o que é o amor? Eu não sei, aqui escrevo diversas formas de amor.
- “O encantamento do vento” e “O cetro do Guardião”, da saga “Os Castros”, são dois livros de fantasia baseados em mitologia portuguesa e no tempo dos lusitanos. O terceiro há de sair brevemente.
O que é escrever? Para os outros não sei, para mim é vida!
terça-feira, 19 de novembro de 2019
Ontem a minha cadela teve uma ninhada, ou talvez não tenha sido ontem porque os cachorros têm quatro meses e a mãe já não quer nada com eles. Eles que comam por aí, eles que vivam por aí porque chegaram à idade de se desenvencilharem e o tempo da maternidade acabou.
Ontem umas andorinhas tinham posto ovos num ninho e foi lindo ver as suas crias a rebentarem-nos e saírem, a pedirem comida e serem alimentadas bico no bico e a experimentar o seu primeiro voo até que a mãe as enxotou e seguiram o seu caminho. Pensando bem talvez não tenha sido ontem.
Ontem uma leoa teve filhotes, eram tão giros a brincarem até que um dos machos enfrentou o leão dominador e foi expulso da comunidade, não, não foi ontem.
Ontem tive filhos, eram uns bebés tão lindos, talvez não tenha sido ontem porque o primeiro foi embora cedo e o segundo a seguir, seguiram as suas vidas e nem os expulsei como as cadelas, pássaros, leoas o fazem.
Ontem a natureza chamou as crias que passaram a adultos de hoje, já nem sei porque confundem-se os dias e a liberdade chama os seus.
Hoje, tenho a certeza que foi hoje, os filhos foram, eu fui da minha mãe e ela da sua.
* Chamaram-me de Alien num outro texto por ter dito que os laços de sangue nada significam. E, para mim, laços de sangue não existem, existe natureza. Foi um exercício filosófico mal interpretado, mas não estamos aqui para servir os loucos? A natureza chama, a natureza larga e todos somos natureza, estjam à vontade para contestar.
* Chamaram-me de Alien num outro texto por ter dito que os laços de sangue nada significam. E, para mim, laços de sangue não existem, existe natureza. Foi um exercício filosófico mal interpretado, mas não estamos aqui para servir os loucos? A natureza chama, a natureza larga e todos somos natureza, estjam à vontade para contestar.
terça-feira, 5 de novembro de 2019
Perguntam-me, porque acreditas no invisível? Não tenho resposta a dar, talvez porque escrevo e nas entrelinhas os Deuses falam comigo, talvez no meu dia-a-dia fora do betão, fora da calçada portuguesa onde todos caminham de cabeça baixa sem verem o sol ou a chuva, antes num aparelho qualquer eletrónico formulam a vida.
Vivo como todos os outros, cumpro como todos os outros, calcorreio como todos os outros e por vezes a minha cabeça ainda baixa estará porque não é fácil viver, contudo procuro, procuro sem nunca esquecer que não é aqui que quero estar, não é assim que quero viver e liberto as minhas dúvidas em estranhas linhas que não serão lidas e tão pouco me importa porque a minha liberdade está na minha escrita, aceite ou não, são apenas pedaços meus compreendidos entre mim e mim.
domingo, 3 de novembro de 2019
Vejo gente, muita gente, que enterra, espezinha e nem percebe. Vejo um vento diferente que me mostra outros lugares que não são decifráveis para quem não os vê. Vejo caminhos perdidos que não foram tomados porque não os viram e eles estavam lá. Vejo tanto de tanto, vejo gente e com essa gente vêm árvores, abrigo e carinho. Vejo cascatas por descobrir e tantos segredos por descobrir. E essa gente tem regras diferentes como eu, sentimos árvores, a chuva, uma ruína, um fruto numa árvore. E sei-me que com essa gente quero estar.
Eram unidos e desunidos ao mesmo tempo, eram jovens e não questionavam a sua vida, viviam como podiam na agressividade, no abandono, no esquecimento. Eram tão novos, foram divididos, mutilados, delimitados até terem tido coragem para romper a bolha onde viviam. Uns primeiros, depois os restantes, os últimos pela força da vida. Eram tão jovens e nem todos questionavam porque era aquela a vida. Alguém questionou e saiu do círculo vicioso, viu outros horizontes sem viajar, viu vida simples, finalmente achara o sossego, tudo o que procurava. Uma face numa nuvem.
sexta-feira, 1 de novembro de 2019
[Dali]
Prendem-me neste pedaço de terra quando tudo é uma explosão
na minha cabeça, não para, não acaba, continua sem nexo sem a consiga travar.
Prendem-me de mão atadas enquanto procuro refúgio e a cabeça gira sem se fixar,
a loucura invade e não a consigo frear. Somente os passos indefinidos estão
soltos e sem saberem para onde se dirigir mas continuam numa luta insana até
travarem, travarem a cabeça, soltarem as mão e recordar o corpo onde está.
Desespero pela sobrevivência, pelo término da desordem, pelo fim da derrota que
me gira a cabeça, ata as mãos e fazem que os passos não saibam para onde vão e
no fim caio estafada no chão desejando um outro dia que chegará esperando que
toda a insanidade se vá.
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
A noite chegou, estava quase na hora de nos unirmos em
conjunto, quase na hora dos dois mundo
se unirem, quase a hora de sermos um todo. Agarrei na mão de Tangii, uma mão
forte que sempre me segurou, enquanto meu pai fazia o apelo aos Deuses para que
nos ouvissem. A fogueira ardia, as labaredas lambiam o ar e as sombras dançavam
entre nós. Estávamos todos unidos e unidos com a natureza, com Ataegina de um
lado e Endovellico do outro, a noite em que se uniriam, a noite da ligação entre
tudo. Pedíamos pouco, pedíamos que este tempo de escuridão não fosse agreste,
que não nos levasse os nossos filhos, os anciões, que resguardasse as sementes
e os nossos rebanhos. Que nos desse força até a luz vencesse de novo. E assim
comemorámos mais um ano, unidos pelas nossas mãos, pela nossa união.
Subi o monte só para chegar mais perto dos Deuses, comigo
uma trouxa de oferendas, não queria nada para mim, apenas honrar o dia de
Endovellico. Com ele estavam todos os meus amigos desaparecidos, os humanos e
não humanos. Com ele estava uma parte mim sempre difícil de esquecer e por isso
acendi uma fogueira, queimei ervas,
deixei bolotas e castanhas junto a uma pedra e esperei toda a noite, refleti
toda a noite, revi toda a noite nos que estavam no Outro Mundo, nesse onde um
dia irei também e os encontrarei. Nem todos os que relembramos existiram nesta
vida connosco, somos mais do que esta simples existência, um universo que se
multiplica e eu precisava de paz, de amor e tive tudo isso porque os deuses
acolhem quem os procura e sempre vivi com eles.
quarta-feira, 30 de outubro de 2019
Deste-me a mão talvez com medo de a perder. Deixei que os teus
dedos se encostassem aos meus, era um encontro nosso, um encontro íntimo no meio
da multidão, mas o que tinha para te dar não era o encontro das nossas mãos no
meio da multidão. Queria-te mostrar o miradouro de Santa Catarina onde talvez
visses o que os meus olhos veem ou talvez fosse eu que não te compreendesse. Como
poderia saber quem está em falta? Eu, pela falta da realidade ou tu por não
veres os meus universos? Mas continuámos de mãos dadas como se nada
acontecesse, como se a vida fosse resumida àquele contacto ínfimo e perguntei a
mim mesma se seria o suficiente este lapso de tempo em que nos encontrávamos.
Porque gostava do teu ombro e do teu silêncio mas também amo a floresta mais do
que a cidade no fim do seu dia.
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Procuraste-me noutro dia pensando que estava disponível para
ti, só para ti. Mas falaram-me as árvores onde não tens canto porque não as
ouves e ridicularizas tudo o que não conheces. Ah! Se percebesses o meu mundo
talvez não arrancasses rosas do meu quintal nem esmagavas as ervas daninhas, nem
tão pouco te risses de mim quando te digo que as pedras sabem mais do que nós. mas
para ti tudo é razão, como se a razão explicasse a beleza do amanhecer que não
queres ver porque prefere dormir e ignorar a vida como ela é. Tens a tua vida,
eu tenho a minha e não entendes que há universos paralelos que não se
encontram. Talvez nem entendas que haja mais do que a nossa existência
singular, mas não serei eu que to direi, terás de descobrir por ti, não passo
de uma brisa nos anos acumulados da nossa existência, mas não me importo,
enquanto for brisa as folhas de uma árvore tremerão com a minha passagem e
saberão que por lá passei.
sábado, 26 de outubro de 2019
Atravessei um campo doloroso só para ali chegar, queria vida e vida queriam-me negar, tudo em nome da burla, em nome do aproveitamento, em nome da ganância. Para calá-los, para silenciá-los e conseguir respirar dei-lhes tudo, dei-lhes a minha sanidade, dei-lhes a minha loucura, dei-lhes tudo o que me pediram e pediram o máximo só para eu poder respirar. Tudo poderia ter sido diferente não fosse a minha necessidade de voar para longe, de esconder-me da escumalha.
São tantos os que habitam por aí, os que se aproveitam, os que não nos deixam, nós os que queremos apenas viver e nada mais, colam-se, pegam-se e sugam, sugam o sangue, o sopro.
Não, deixei de acreditar no ser humano, não os quero perto de mim, quero árvores e ervas, essas cujos nomes desconheço, mas nada de mal me fazem, antes, convidam-me, abrem-me os braços e dizem-me, anda para aqui.
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
Era um teixo procurado para aniquilar os meus inimigos. Com as minhas bagas espalhavam as setas e matavam os inimigos. Agora não, simplesmente matam-me porque não me compreendem, matam-me pelo prazer de matar e estou em extinção. Quantos saberão? No entanto plantam-se acácias que são uma praga, pinheiros e eucaliptos, não castanheiros ou teixos, árvores autóctones, nada disso, o lucro tem de ser rápido e por isso irei desaparecer em Portugal. Não fiz mal a ninguém, mas ninguém me quis.
quinta-feira, 24 de outubro de 2019
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
Todos os dias olho o céu, por vezes encoberto, por vezes
aberto. Procuro um sinal de uma ave que me diga em que direção seguir e espero,
espero, espero que seja para breve o próximo caminho a trilhar. Tanto tempo
entre paredes de betão, eu que quero voar também sem restrições. Digam-me,
porque me amarram as mãos? Porque me prendem na insanidade do quotidiano quando
nada disto me diz respeito? E corro, corro como louca à procura da razão sem a
ver, procuro debaixo das pedras, nos caminhos invisíveis e vejo apenas pedras
da calçada cem mil vezes calcorreadas. Ponho música onde a ouço como uma louca
de tão grande o desespero, na arte encontro-me, nos poetas, nos escritores, nos
pintores, não nesta insanidade que me rodeia e tento respirar não conseguido.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Não entendem, compreendo, compreendo mais do que é necessário,
querem a vida como ela se apresenta, não querem se se transforme num pesadelo.
Compreendo perfeitamente, quem o quer? Eu gosto de deitar-me à noite e ver a um
filme calmamente, mas enquanto o faço largo CO2 no ambiente, enquanto vos dirijo
estas palavras largo CO2 na atmosfera. A nossa pegada ecológica vais mais além
do que pensamos, iremos ter uma guerra pela água, migrantes irão/virão e sim, esta
noite irei ver um filme porque não passo de um inseto nesta loucura chama civilização.
Saí para a rua sufocada, na estrada buzinavam automóveis, em
todo o lado betão. Corri, corri, corri e apanhei o comboio para Sintra. Nada
era o que era, mas trepei aos caminhos escondidos até chegar às minhas pedras,
ao meu refúgio. Queria tanto dizer que tudo permanecia como sempre, que as
motos não devastavam o lugar, que os automóveis não devastavam o lugar, mas
seria mentia e mentiras não conto.
Embrenhei-me por caminhos antigos, por aqueles que os
turistas não conhecem e não levam a nenhum lugar especial, simplesmente a natureza
livre dos outros onde poderia reencontrar os meus Deuses, esses que ninguém acredita,
mas para mim não é importante.
Só queria o caminho das ervas, o caminho da paz, o caminho
longe de motores e gente que não preserva, não o respeita e nem compreende. Não
consegui nada disso, são demasiados, aniquilam sem saberem o que fazem e chamam
de desporto.
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Voei toda a noite porque estava desesperada. Uma ave como eu
não é notívaga, os predadores estavam por aí, mas não consegui parar. Não me
procuravam, talvez os rastejantes, nenhuma ave pensaria que eu iria percorrer o
caminho da lua. Mas precisava de encontrar o meu caminho, um lugar apenas que
para mim fosse seguro, um refúgio, quase como um lar. Sei que teria de dormir
pela madrugada quando devia estar desperta, sei que o mundo seria virado do
avesso por o ter provocado. Mas a necessidade de fugir era tão grande que voei
pela noite fora. Queria tanto a paz do caminho até que encontrei uma reentrância
numa das pedras antigas. As pedras não falam, disseram-me, que disparate, tudo
o que pertence à natureza tem voz, presença, vivência e a pedra disse-me,
deixa-te estar, eu protejo-te. Sei da loucura dos Homens e de eles eu fujo, enquanto
não descobrirem as maravilhas da natureza estarei segura.
Ontem esqueci-me do amanhã, apanhei marmelos, cozinhei-os e fiz marmelada para uma época. Não sei se esse tempo existirá, mas o frigorífico estará cheio para quem queira me visitar. Falo com os meus filhos como se todos os amanhãs existissem, provavelmente teremos mais vinte anos, eu serei velha, eles não, os bebés de hoje pouca idade terão. Ninguém se importa, talvez nem eu devesse, talvez ignorasse e vivesse o mais simplesmente que conseguisse, apagar as notícias, ignorar os apelos, ignorar tudo o que é tenebroso e viver uma vida simples. Provavelmente o farei, não consigo lutar contra um mundo ignorante ou que o prefere assim, talvez devesse cultivar a minha alface, as minhas árvores de fruta e esperasse sentada as intempéries. Algo em mim não me deixa e penso, porque te desgastas? Dorme, vive como os outros, adormece os dias e eles passarão, talvez nem nada aconteça na tua vida, somente nas dos teus filhos.
sábado, 19 de outubro de 2019
Enquanto sonhamos, enquanto sentimos o tronco de um
carvalho, enquanto visualizamos um voo de um grifo eu liberto as minhas asas e
vou ao seu encontro. Não sei se me querem encontrar, o meu odor a predador é
tão intenso, de tão forte que é escondem-se os animais das florestas, as
árvores encolhem-se. “Não!”, suplico, “Não, quero ser um deles, mas a eles
pertenço.” Prendo-me a pedras, sinto o seu pulsar e sei que terei paz, a paz de
mais de mil anos pois elas foram testemunhas da nossa vivência, da minha. Sussurro-lhes,
salvem-me e deixem--me voar, sei que também destruo, não sei viver de outro
modo, nada disso quero, por favor ajudem-me.”
As pedras na sua língua tão antiga que se perderam nos
séculos, aqueceram-me, “deixa-te estar, repousa em cima de mim como os pássaros
o fazem, como os habitantes dos bosques o fazem. Anda, descansa, talvez haja
solução, não para ti nem para os teus, faremos de nós uma lembrança do que tudo
aconteceu e quando o planeta se irritar nós permaneceremos. Talvez voltes como
um pássaro depois de todo o acontecimento, pousarás aqui e dir-te-ei, és sempre
bem-vinda.
sexta-feira, 18 de outubro de 2019
O clima aquece, os países do Sul estão habituados. Irá morrer gente no Norte, gente essa que nunca sentiram o solo seco e a falta de água, gente que não sabe o que são condições difíceis. E vivem as suas vidas como se nada se passasse, os responsáveis, os criminosos, os que que pensam em economia, mas quando a água faltar não haverá diferenças, haverá guerra, e guerra teremos. Não nós, pobres portugueses que estamos sempre na míngua da chuva, não os países do Sul que esperamos a chuva a cada ano. E por isso digo, vós, os condenáveis, vós que tendes tudo e tudo quereis, o que farão? Nada mudarão na vossa vida mesquinha, mas não se livrarão do que o planeta vos presenciar, porque sim, não irão ficar incólumes.
Será preciso um milagre, será preciso confiar nos dados que os Deuses lançam? Não, esse é simplesmente um jogo que os Humanos gostam, não, os Deuses distanciaram-se porque não têm lugar nesta vida e esta vida é tudo o que tenho. Procuro um lugar mais perto deles e é tão difícil, tão difícil, esconderam-se desta loucura, da ganância, da estupidez humana. Como é possível não verem? E enquanto penso nisso, enquanto sofro com isso, corro para as árvores, abraço-as e espero que falem comigo. Não, não sou igual a eles, tirem-me deste ciclo que não quero, mas é impossível, sou viciada na sociedade, mato tanto quanto os restantes. E no fim do dia quando me vejo ao espelho vejo uma multidão de gente atrás de mim, uns piores, outros menos, todos responsáveis e sim, não há mais Lusitanos, não há hospitalidade, não há crença, não há propósito, não há nada. Os dias correm e todos reclamam pelo fim-de-semana como se fosse uma ponte duradoura que irá salvar o que precisa de ser salvo. E nada está a salvo.
Hoje choveu um pouco, as flores brilharam, o rosto do povo
brilhou, mas não sabe o mal que faz à terra quando produzem o que não devia ser
produzido nestas paragens. Todos comemos, todos somos pactuantes, mas o solo
grita, as barragens descem de nível e ninguém quer saber. Três regas por dia
quando não devia acontecer. Nada percebo de agricultura, mas a água evapora nas
horas de calor e as árvores não bebem, bebe o sol, provavelmente mais sedento do
resto do Planeta. Somos inconscientes, não queremos saber, fazemos as nossas
regras ao nosso sabor e a água sofre, as barragens descem, o povo queixa-se
quando é o principal culpado.
Levantei voo e fugi de todos os laranjais, estou cansada da prepotência,
de todo o egoísmo porque não terei palavras para explicar aos meus filhos
porque terão de morrer em breve. Porque irão, como eu. As migrações começarão e
a guerra rebentará, seremos um produto do impensável, do indiscutível e perguntam-me,
o que tu fazes? Tanto quantos os outros, apenas tento ser um pouco menos, não
consigo viver nesta civilização tão viciada e disso tenho medo.
quinta-feira, 17 de outubro de 2019
- O que fazes? – perguntam-me as vozes furiosas enquanto eu empacoto as minhas coisas. – Para onde vais? Para onde te escondes?
Tão errados, tão afastados da vida, a vida não é alcatrão, dêem-me uma árvore, duas, tentarei duplicá-las, eu que nada sei sobre isso, mas sei que a vida não é o relógio e o contrarrelógio nem tão pouco a ausência da lua.
Viram o luar nestes dias? Reparam nas sombras da lua sobre as árvores, na placidez da sua luz? Repararam que o mundo avança lentamente indiferente ao que querem, ao que pedem, ao que vivem? E assim continuará até a Terra estar farta do Homem e o expulsar.
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
Um pássaro acordou-me, pensei que era um rouxinol, mas era
um verdilhão. Mal os conheço, mas ele insistiu em apresentar-se, tudo isto
antes de beber o café da manhã. “Anda, está sol”, disse-me, “anda, vem respirar
o ar da manhã, quando todas as cores vibram e os pinheiros mansos falam entre
si. “Não, não posso, tenho tanto para fazer!”, tentei fazer-lhe ver. Mas ele
bicou na janela, saltou entre uma pata e outra expressando o seu espanto, a
natureza no mundo e o meu mundo fechado entre paredes.
Resolvi não hesitar e saí atrás dele que voou para longe.
Mal o alcançava, custava-me correr daquele modo e comecei a pensar na minha
sensatez. Até que vi homens de serras elétricas prontos para derrubarem
pinheiros mansos, prontos para matarem e aniquilarem. Numa fúria aumentei o meu
ritmo, atirei-me a um que num gesto mandou-me ao chão.
“Quem pensas que és para nos impedires?”
O verdilhão estava pousado num ramo e eu no chão, eram três
e eu não era ninguém.
“Não sou ninguém, mas não ousais nem ferir porque tereis de
me matar para o fazer.”
Eles riram-se, ligaram as motosserras e derrubaram uma a
uma, três árvores enquanto me empurravam.
Vieram os camiões, vieram todos os outros homens e eu
impotente, o verdilhão pousou no meu ombro e bicou a minha orelha.
“Hoje não,” segredou-me, “talvez nunca. Mas vistes a manhã.”
domingo, 13 de outubro de 2019
[Paula Rego]
Deixaram-me gritar e eu gritei. Deixaram-me amaldiçoar e eu amaldiçoei.
Deixaram-me chorar e eu chorei. Nada disso me satisfez e fugi da loucura dos
prédios, do betão, do alcatrão e percorri veredas, caminhos errantes, trilhos
mal marcados até que me perdi e caí no chão angustiada. Os castanheiros
rodearam-me, cercaram-me, não me deixaram sair dali. “O que tens?”, sussurrava o
vento na sua voz, “o que andas a fazer?”, murmurava a brisa, “para onde corres
sem destino?”, acabaram por perguntar, mas eu na minha angústia não sabia o que
dizer. Aos poucos os arbustos aproximaram-se, com o seu aroma tranquilizador sosseguei,
os esquilos desceram das suas tocas, os coelhos aproximaram-se e cheiraram-me. “Tu
és o inimigo”, declararam e fugiram. “Não, não sei quem sou”, tentei dizer, mas
os animais afastaram-se com medo de mim menos as árvores que continuaram
imóveis circundando-me. “Quem és e o que procuras?”. “Quem sou?”, pensei ainda
mais angustiada, um resto de uma sociedade que não compreendo nem quero, como
poderia explicar? “Sou o que procuro,”, disse-lhes num murmúrio, “não sou
vento, nem terra, nem fogo e tão pouco água, sou um ente perdido num mundo proibido
para mim”. “E o que procuras, então?”, insistiram. “Quero vida, quero noção, chega
de razão, chega de solidão, chega de devorar o infinito, esse quero-o num
vislumbre só para saber que existe”.
O verão estendeu a mão ao outono e este entrou calmamente sabendo que era a sua hora. Estranharam os transeuntes, os ausentes, os indiferentes. Estranharam todos que não olham para o céu onde o sol se encontra, onde se vê a lua ou a copa das árvores. Os pássaros, esses, já tinham feito a sua migração e ninguém reparou nisso. O Homem com a primeira chuva consultou o calendário, verificou os dados e pensou, sim, é outono, mas não espreitou pela janela nem olhou o horizonte. As raras árvores das cidades murmuraram entre si não compreendendo porque nem todos os animais estão sintonizados, porque andam desesperados e se vingam nos restantes, os outros, os esquecidos, os indefesos, os desprotegidos. Por isso calaram-se e secaram as suas raízes e deixaram o Homem, o único animal sobrevivente, viver a sua vida contente.
[Dali]
Não, o meu maior medo é dormir, deixar a loucura à solta, tão só, tão sozinha, tão desgovernada. E, enquanto eu fecho os olhos e esqueço o mundo este aparece ainda mais feroz. Não devia ser permitido, deveríamos ter um momento para nós, um momento de paz, um refúgio da loucura que nos envolve todos os dia. Mas não, o mundo persegue-me tal como a minha sombra o faz incansavelmente.
Os olhos abrem bem abertos, as luzes sufocam o corpo, o corpo mole, a cabeça gira, a vida entra em remoinho que mais ninguém vê, o início da loucura, o início do início. Não, não sou eu, são esses corpos que se movem livremente pensando que são senhores de si, resguardo-me, fujo, não os quero, essa liberdade que dizem serem a verdade, essa rebelião em nome das suas intenções que pensam serem puras. Não, fecho os olhos, escondo-me de novo, não à mentira, ao desengano, não à ignorância que deixei de suportar, não, irei dormir de novo, não, irei acordar e viver contra esta maré de loucos.
sábado, 12 de outubro de 2019
Quiseram-me aniquilar, apagar a minha existência porque os
meus bosques são diferentes e eles contêm pássaros de todas as cores onde o
Homem está interdito. Fechei horizontes dos outros, levantei espinhos e
resguardei carvalhos antigos, teixos quase extintos, sobreiros onde não são
violados, pinheiros altivos. As águias levantaram voo picado, os grifos
rodearam a presa e zelaram por toda a natureza. Os lobos apareceram com a
peeira, levantaram fronteiras, defenderam o território e não deixaram
atravessar para além. Os andorinhões espalharam o alarme e as restantes árvores
ficaram atentas. Mas o rio subiu, as águas revoltaram-se, espraiaram nos prados
inundando o espaço ocupado nas aldeias afugentando todos os que restavam e eu
deitei-me nas ervas descansada.
sexta-feira, 11 de outubro de 2019
Sentes? Não sentes? O que sentes? A brisa, o sol, a copa das
árvores, a erva daninha, a aborrecida da mosca, o que sentes? O que está para
além de ti? Nada, dizes-me, porque para ti o mundo acabou entre prédios, entre
horários, entre gente que se isola. Não os leve a mal, fazem o que tu fazes.
Vem, pega na minha mão, caminharemos por caminhos secretos que só estarão
escritos, vem e posso mostrar-te outra realidade, vem, queres vir ou ficar
nesse mundo cinzento? Não queres vir, continuas no caminho da calçada, tens de
sentir a tua escolha que não é a minha, a ti entrego-te a mão, mas não o meu
espírito. Se vieres posso dar-te a conhecer as ervas, somente as ervas.
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
Lança-te, acorda estonteado, nada desapareceu, a indiferença dos dias deu-te apenas um espaço de tempo para viveres um pouco mais e amanhã será igual como ontem, como ontem será igual ao teu amanhã e assim continuarás até que pares, que atravesses, que consigas encarar um castanheiro de duzentos e perguntar-lhes, como resististe? Não estive na mão dos Homens, responde-te, anda, senta-te à minha sombra, anda, sente os espinhos do meu fruto porque esses sempre os terás.
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
(Tela de Silvestre Raposo)
Talvez queiram aparar as minhas penas para me deformar, talvez queiram amarrar o meu bico para não gritar, talvez queiram amarrar as minhas asas para não voar, mas hei-de de compor-me, hei-de gritar, hei-de de voar e estenderei as minhas asas num voo magnifico onde apenas todos os pássaros me verão e esquecerei quem viver abaixo de mim.
N.A - Durante anos o meu avatar foi uma caturra, Silvestre Raposo pintou esta tela para mim e ofereceu-ma, a caturra representa o que sou, um pássaro livre, sim, com crista e refilona, com bico que magoa, com todos esses defeitos, um avatar que esteve comigo durante mais de 15 anos)
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Hoje descobri que os Deuses ainda não nos abandonaram,
esconderam-se de nós porque matámos toda a natureza, mas escondidos não esqueceram
os seus filhos. Viajei até ao alto da montanha, abri os braços e entreguei-me à
natureza. Não por mim, por todos os filhos que precisavam, pelos pássaros,
pelas árvores, pelas ervas rebeldes que todos espezinham sem saberem o que
fazem. Pelos esquilos travessos, os grifos que pairavam no ar, pelos rouxinóis,
pelas Felosa-das-figueiras, por todos os pássaros que identifico e não os
reconheço, por toda a flora que nasce, cresce, vive, fala e ninguém quer saber.
Mas os Deuses sim e estiveram comigo.
sexta-feira, 27 de setembro de 2019
Hoje vejo pó, vejo cinzas, vejo os Homens na loucura pelo
poder. Vejo terra destruída, água consumida em vão, árvores queimadas ou
derrubadas, vejo violação. Vejo tanto de tanto que os meus olhos se consomem e
a mente foge. Vejo e não quero ver, correm as televisões atrás de mim, refugio-me
nos prados quase inexistentes onde o carvão tenta invadir este espaço.
Procuro carvalhos, grifos e águias, lobos ibéricos que quase
já não os há, procuro montanhas que ainda não foram destruídas e vejo-me sem
caminhos, vejo-me só e cansada.
As vozes que ouço não passam de murmúrios e sento-me no chão
esgotada falando com as pedras. Dizem-me, a hora chegará, a tua também.
quinta-feira, 26 de setembro de 2019
Queria uma árvore, árvore não me deram, queria ver um prado,
um prado não vi. Queria tanto da natureza, mas esta foge do mundo, foge de nós
como um cão abandonado e maltratado.
Queria sol e chuva e veio chuva e sol. Não era o que deveria
ter acontecido, mas foi o que me deram.
Queria paz e paz roubaram-me. Queria tempo e esse escapa
porque as árvores fugiram, os prados desapareceram, o sol e a chuva não se
entendem e fico aflita a olhar pela janela a tentar ver pássaros que com as árvores
se foram.
sábado, 21 de setembro de 2019
Hoje vi chuva a cair e as árvores ficaram viçosas. Vi água a escorrer e os rios engrossaram. Vi vida e vida me deram. Hoje podia ter sido o dia de ontem não fosse a chuva lembrar-me que a natureza tanto oferece. Hoje vi uma esperança de amanhã. O que quero para além das minhas ervas, para além das minhas árvores, para além dos pássaros, da vida? Sem vida o que somos? Eu não serei ninguém, não pela morte física, antes pelo desespero de não ter conseguido falar-vos dos montes e vales.
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