quarta-feira, 3 de junho de 2020

        Havia uma altura onde existiam dois castigos: os nossos e o dos objetos. Os objetos tinham tantos direitos quanto um ser-humano e por isso tinham os deveres do humanos. Ou quase. Eram trafulhas se de brinquedos falamos, impertinentes se ouvíssemos os tapetes e estes ainda faziam com que caíssemos se pudessem. Esta era uma pena grave.
          As pessoas não são de fiar, mas nem os objetos. Primeiro estes últimos irritavam-se por chamá-los de “objetos”: consideravam ofensivo pois tinham vida como tudo no mundo incluindo as pedras. Um dia chamei a um de “coisa”, uma cómoda, atirou-me com a sua perna de madeira e andei quinze dias a coxear. Claro, como os juízes não viram, esta não sofreu nada, apesar dos meus apelos no tribunal.
        - Não há provas. – Declararam mesmo tendo visto a nódoa negra na perna. – Qualquer um poderia ter feito isso ou mesmo a senhora caindo num sítio qualquer.
           E o processo foi fechado.
          Conheço as manhas da maioria: o colchão que se punha aos pulos para tentar atirar-me para o chão, nessa altura o tapete deslizava, caia e levantava-me para ir à casa de banho, mas nem aí: o espelho fazia caretas, a sanita resmungava, o lavatório ficava sujo de propósito.
          Até há pouco tempo nunca tinha visto uma manifestação das escadas, mas uma bela manhã tornaram-se invisíveis – o que seria uma grande pena, mas mais uma vez ninguém viu para além de mim. Fiquei aflita, como poderia descer para o r/c? Pensei friamente, fiz uma corda com os lençóis, desci e encontrei a janela que tinha sempre aberta. Estava por demais irritada, mas não podia fazer nada, sempre que um Humano dava um pontapé numa cadeira era atirado para a prisão por dois anos e para os objetos tinham sempre uma desculpa.

1 comentário:

  1. Amargamente a gente escorrega pelo lençol para concluir o que há muito sabia.
    Bj.

    ResponderEliminar