quinta-feira, 31 de outubro de 2019







A noite chegou, estava quase na hora de nos unirmos em conjunto, quase na hora dos  dois mundo se unirem, quase a hora de sermos um todo. Agarrei na mão de Tangii, uma mão forte que sempre me segurou, enquanto meu pai fazia o apelo aos Deuses para que nos ouvissem. A fogueira ardia, as labaredas lambiam o ar e as sombras dançavam entre nós. Estávamos todos unidos e unidos com a natureza, com Ataegina de um lado e Endovellico do outro, a noite em que se uniriam, a noite da ligação entre tudo. Pedíamos pouco, pedíamos que este tempo de escuridão não fosse agreste, que não nos levasse os nossos filhos, os anciões, que resguardasse as sementes e os nossos rebanhos. Que nos desse força até a luz vencesse de novo. E assim comemorámos mais um ano, unidos pelas nossas mãos, pela nossa união.






Subi o monte só para chegar mais perto dos Deuses, comigo uma trouxa de oferendas, não queria nada para mim, apenas honrar o dia de Endovellico. Com ele estavam todos os meus amigos desaparecidos, os humanos e não humanos. Com ele estava uma parte mim sempre difícil de esquecer e por isso acendi uma fogueira,  queimei ervas, deixei bolotas e castanhas junto a uma pedra e esperei toda a noite, refleti toda a noite, revi toda a noite nos que estavam no Outro Mundo, nesse onde um dia irei também e os encontrarei. Nem todos os que relembramos existiram nesta vida connosco, somos mais do que esta simples existência, um universo que se multiplica e eu precisava de paz, de amor e tive tudo isso porque os deuses acolhem quem os procura e sempre vivi com eles.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019







Deste-me a mão talvez com medo de a perder. Deixei que os teus dedos se encostassem aos meus, era um encontro nosso, um encontro íntimo no meio da multidão, mas o que tinha para te dar não era o encontro das nossas mãos no meio da multidão. Queria-te mostrar o miradouro de Santa Catarina onde talvez visses o que os meus olhos veem ou talvez fosse eu que não te compreendesse. Como poderia saber quem está em falta? Eu, pela falta da realidade ou tu por não veres os meus universos? Mas continuámos de mãos dadas como se nada acontecesse, como se a vida fosse resumida àquele contacto ínfimo e perguntei a mim mesma se seria o suficiente este lapso de tempo em que nos encontrávamos. Porque gostava do teu ombro e do teu silêncio mas também amo a floresta mais do que a cidade no fim do seu dia. 

terça-feira, 29 de outubro de 2019








Procuraste-me noutro dia pensando que estava disponível para ti, só para ti. Mas falaram-me as árvores onde não tens canto porque não as ouves e ridicularizas tudo o que não conheces. Ah! Se percebesses o meu mundo talvez não arrancasses rosas do meu quintal nem esmagavas as ervas daninhas, nem tão pouco te risses de mim quando te digo que as pedras sabem mais do que nós. mas para ti tudo é razão, como se a razão explicasse a beleza do amanhecer que não queres ver porque prefere dormir e ignorar a vida como ela é. Tens a tua vida, eu tenho a minha e não entendes que há universos paralelos que não se encontram. Talvez nem entendas que haja mais do que a nossa existência singular, mas não serei eu que to direi, terás de descobrir por ti, não passo de uma brisa nos anos acumulados da nossa existência, mas não me importo, enquanto for brisa as folhas de uma árvore tremerão com a minha passagem e saberão que por lá passei.

sábado, 26 de outubro de 2019








Atravessei um campo doloroso só para ali chegar, queria vida e vida queriam-me negar, tudo em nome da burla, em nome do aproveitamento, em nome da ganância. Para calá-los, para silenciá-los e conseguir respirar dei-lhes tudo, dei-lhes a minha sanidade, dei-lhes a minha loucura, dei-lhes tudo o que me pediram e pediram o máximo só para eu poder respirar. Tudo poderia ter sido diferente não fosse a minha necessidade de voar para longe, de esconder-me da escumalha.
São tantos os que habitam por aí, os que se aproveitam, os que não nos deixam, nós os que queremos apenas viver e nada mais, colam-se, pegam-se e sugam, sugam o sangue, o sopro.
Não, deixei de acreditar no ser humano, não os quero perto de mim, quero árvores e ervas, essas cujos nomes desconheço, mas nada de mal me fazem, antes, convidam-me, abrem-me os braços e dizem-me, anda para aqui.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019



Era um teixo procurado para aniquilar os meus inimigos. Com as minhas bagas espalhavam as setas e matavam os inimigos. Agora não, simplesmente matam-me porque não me compreendem, matam-me pelo prazer de matar e estou em extinção. Quantos saberão? No entanto plantam-se acácias que são uma praga, pinheiros e eucaliptos, não castanheiros ou teixos, árvores autóctones, nada disso, o lucro tem de ser rápido e por isso irei desaparecer em Portugal. Não fiz mal a ninguém, mas ninguém me quis.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019





Fui de encontro à natureza, mas não a encontrei. Em vez dela havia um buraco de exploração, litium disseram-me. Ganharemos dinheiro, explicaram-me, este é e será o nosso petróleo, mas não me falaram nas árvores abatidas, nos animais acossados, na natureza perdida, só simplesmente em dinheiro. Eu não bebo dinheiro, eu não como dinheiro, eu não respiro dinheiro, mas dinheiro foi a opção. Ninguém me perguntou que opção eu queria e essa não queria, ninguém me perguntou se queria o meu país esburacado, atrofiado, a água contaminada e esgotada para as populações. A paisagem que conhecia desapareceu. Ninguém me perguntou nada e fazem o que querem, fazem-no cem mil vezes apesar dos protestos, apesar da amargura do povo quando temos direitos que não foram cumpridos. Onde vivo? Que Portugal é este?

quarta-feira, 23 de outubro de 2019






Todos os dias olho o céu, por vezes encoberto, por vezes aberto. Procuro um sinal de uma ave que me diga em que direção seguir e espero, espero, espero que seja para breve o próximo caminho a trilhar. Tanto tempo entre paredes de betão, eu que quero voar também sem restrições. Digam-me, porque me amarram as mãos? Porque me prendem na insanidade do quotidiano quando nada disto me diz respeito? E corro, corro como louca à procura da razão sem a ver, procuro debaixo das pedras, nos caminhos invisíveis e vejo apenas pedras da calçada cem mil vezes calcorreadas. Ponho música onde a ouço como uma louca de tão grande o desespero, na arte encontro-me, nos poetas, nos escritores, nos pintores, não nesta insanidade que me rodeia e tento respirar não conseguido.

terça-feira, 22 de outubro de 2019


Não entendem, compreendo, compreendo mais do que é necessário, querem a vida como ela se apresenta, não querem se se transforme num pesadelo. Compreendo perfeitamente, quem o quer? Eu gosto de deitar-me à noite e ver a um filme calmamente, mas enquanto o faço largo CO2 no ambiente, enquanto vos dirijo estas palavras largo CO2 na atmosfera. A nossa pegada ecológica vais mais além do que pensamos, iremos ter uma guerra pela água, migrantes irão/virão e sim, esta noite irei ver um filme porque não passo de um inseto nesta loucura chama civilização.




Saí para a rua sufocada, na estrada buzinavam automóveis, em todo o lado betão. Corri, corri, corri e apanhei o comboio para Sintra. Nada era o que era, mas trepei aos caminhos escondidos até chegar às minhas pedras, ao meu refúgio. Queria tanto dizer que tudo permanecia como sempre, que as motos não devastavam o lugar, que os automóveis não devastavam o lugar, mas seria mentia e mentiras não conto.
Embrenhei-me por caminhos antigos, por aqueles que os turistas não conhecem e não levam a nenhum lugar especial, simplesmente a natureza livre dos outros onde poderia reencontrar os meus Deuses, esses que ninguém acredita, mas para mim não é importante.
Só queria o caminho das ervas, o caminho da paz, o caminho longe de motores e gente que não preserva, não o respeita e nem compreende. Não consegui nada disso, são demasiados, aniquilam sem saberem o que fazem e chamam de desporto.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019




Voei toda a noite porque estava desesperada. Uma ave como eu não é notívaga, os predadores estavam por aí, mas não consegui parar. Não me procuravam, talvez os rastejantes, nenhuma ave pensaria que eu iria percorrer o caminho da lua. Mas precisava de encontrar o meu caminho, um lugar apenas que para mim fosse seguro, um refúgio, quase como um lar. Sei que teria de dormir pela madrugada quando devia estar desperta, sei que o mundo seria virado do avesso por o ter provocado. Mas a necessidade de fugir era tão grande que voei pela noite fora. Queria tanto a paz do caminho até que encontrei uma reentrância numa das pedras antigas. As pedras não falam, disseram-me, que disparate, tudo o que pertence à natureza tem voz, presença, vivência e a pedra disse-me, deixa-te estar, eu protejo-te. Sei da loucura dos Homens e de eles eu fujo, enquanto não descobrirem as maravilhas da natureza estarei segura.




Ontem esqueci-me do amanhã, apanhei marmelos, cozinhei-os e fiz marmelada para uma época. Não sei se esse tempo existirá, mas o frigorífico estará cheio para quem queira me visitar. Falo com os meus filhos como se todos os amanhãs existissem, provavelmente teremos mais vinte anos, eu serei velha, eles não, os bebés de hoje pouca idade terão. Ninguém se importa, talvez nem eu devesse, talvez ignorasse e vivesse o mais simplesmente que conseguisse, apagar as notícias, ignorar os apelos, ignorar tudo o que é tenebroso e viver uma vida simples. Provavelmente o farei, não consigo lutar contra um mundo ignorante ou que o prefere assim, talvez devesse cultivar a minha alface, as minhas árvores de fruta e esperasse sentada as intempéries. Algo em mim não me deixa e penso, porque te desgastas? Dorme, vive como os outros, adormece os dias e eles passarão, talvez nem nada aconteça na tua vida, somente nas dos teus filhos.

sábado, 19 de outubro de 2019






Enquanto sonhamos, enquanto sentimos o tronco de um carvalho, enquanto visualizamos um voo de um grifo eu liberto as minhas asas e vou ao seu encontro. Não sei se me querem encontrar, o meu odor a predador é tão intenso, de tão forte que é escondem-se os animais das florestas, as árvores encolhem-se. “Não!”, suplico, “Não, quero ser um deles, mas a eles pertenço.” Prendo-me a pedras, sinto o seu pulsar e sei que terei paz, a paz de mais de mil anos pois elas foram testemunhas da nossa vivência, da minha. Sussurro-lhes, salvem-me e deixem--me voar, sei que também destruo, não sei viver de outro modo, nada disso quero, por favor ajudem-me.”
As pedras na sua língua tão antiga que se perderam nos séculos, aqueceram-me, “deixa-te estar, repousa em cima de mim como os pássaros o fazem, como os habitantes dos bosques o fazem. Anda, descansa, talvez haja solução, não para ti nem para os teus, faremos de nós uma lembrança do que tudo aconteceu e quando o planeta se irritar nós permaneceremos. Talvez voltes como um pássaro depois de todo o acontecimento, pousarás aqui e dir-te-ei, és sempre bem-vinda.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019




O clima aquece, os países do Sul estão habituados. Irá morrer gente no Norte, gente essa que nunca sentiram o solo seco e a falta de água, gente que não sabe o que são condições difíceis. E vivem as suas vidas como se nada se passasse, os responsáveis, os criminosos, os que que pensam em economia, mas quando a água faltar não haverá diferenças, haverá guerra, e guerra teremos. Não nós, pobres portugueses que estamos sempre na míngua da chuva, não os países do Sul que esperamos a chuva a cada ano. E por isso digo, vós, os condenáveis, vós que tendes tudo e tudo quereis, o que farão? Nada mudarão na vossa vida mesquinha, mas não se livrarão do que o planeta vos presenciar, porque sim, não irão ficar incólumes.




Será preciso um milagre, será preciso confiar nos dados que os Deuses lançam? Não, esse é simplesmente um jogo que os Humanos gostam, não, os Deuses distanciaram-se porque não têm lugar nesta vida e esta vida é tudo o que tenho. Procuro um lugar mais perto deles e é tão difícil, tão difícil, esconderam-se desta loucura, da ganância, da estupidez humana. Como é possível não verem? E enquanto penso nisso, enquanto sofro com isso, corro para as árvores, abraço-as e espero que falem comigo. Não, não sou igual a eles, tirem-me deste ciclo que não quero, mas é impossível, sou viciada na sociedade, mato tanto quanto os restantes. E no fim do dia quando me vejo ao espelho vejo uma multidão de gente atrás de mim, uns piores, outros menos, todos responsáveis e sim, não há mais Lusitanos, não há hospitalidade, não há crença, não há propósito, não há nada. Os dias correm e todos reclamam pelo fim-de-semana como se fosse uma ponte duradoura que irá salvar o que precisa de ser salvo. E nada está a salvo.



Hoje choveu um pouco, as flores brilharam, o rosto do povo brilhou, mas não sabe o mal que faz à terra quando produzem o que não devia ser produzido nestas paragens. Todos comemos, todos somos pactuantes, mas o solo grita, as barragens descem de nível e ninguém quer saber. Três regas por dia quando não devia acontecer. Nada percebo de agricultura, mas a água evapora nas horas de calor e as árvores não bebem, bebe o sol, provavelmente mais sedento do resto do Planeta. Somos inconscientes, não queremos saber, fazemos as nossas regras ao nosso sabor e a água sofre, as barragens descem, o povo queixa-se quando é o principal culpado.
Levantei voo e fugi de todos os laranjais, estou cansada da prepotência, de todo o egoísmo porque não terei palavras para explicar aos meus filhos porque terão de morrer em breve. Porque irão, como eu. As migrações começarão e a guerra rebentará, seremos um produto do impensável, do indiscutível e perguntam-me, o que tu fazes? Tanto quantos os outros, apenas tento ser um pouco menos, não consigo viver nesta civilização tão viciada e disso tenho medo.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019





- O que fazes? – perguntam-me as vozes furiosas enquanto eu empacoto as minhas coisas. – Para onde vais? Para onde te escondes?
Tão errados, tão afastados da vida, a vida não é alcatrão, dêem-me uma árvore, duas, tentarei duplicá-las, eu que nada sei sobre isso, mas sei que a vida não é o relógio e o contrarrelógio nem tão pouco a ausência da lua.
Viram o luar nestes dias? Reparam nas sombras da lua sobre as árvores, na placidez da sua luz? Repararam que o mundo avança lentamente indiferente ao que querem, ao que pedem, ao que vivem? E assim continuará até a Terra estar farta do Homem e o expulsar.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019




Um pássaro acordou-me, pensei que era um rouxinol, mas era um verdilhão. Mal os conheço, mas ele insistiu em apresentar-se, tudo isto antes de beber o café da manhã. “Anda, está sol”, disse-me, “anda, vem respirar o ar da manhã, quando todas as cores vibram e os pinheiros mansos falam entre si. “Não, não posso, tenho tanto para fazer!”, tentei fazer-lhe ver. Mas ele bicou na janela, saltou entre uma pata e outra expressando o seu espanto, a natureza no mundo e o meu mundo fechado entre paredes.
Resolvi não hesitar e saí atrás dele que voou para longe. Mal o alcançava, custava-me correr daquele modo e comecei a pensar na minha sensatez. Até que vi homens de serras elétricas prontos para derrubarem pinheiros mansos, prontos para matarem e aniquilarem. Numa fúria aumentei o meu ritmo, atirei-me a um que num gesto mandou-me ao chão.
“Quem pensas que és para nos impedires?”
O verdilhão estava pousado num ramo e eu no chão, eram três e eu não era ninguém.
“Não sou ninguém, mas não ousais nem ferir porque tereis de me matar para o fazer.”
Eles riram-se, ligaram as motosserras e derrubaram uma a uma, três árvores enquanto me empurravam.
Vieram os camiões, vieram todos os outros homens e eu impotente, o verdilhão pousou no meu ombro e bicou a minha orelha.
“Hoje não,” segredou-me, “talvez nunca. Mas vistes a manhã.”

domingo, 13 de outubro de 2019

[Paula Rego]

Deixaram-me gritar e eu gritei. Deixaram-me amaldiçoar e eu amaldiçoei. Deixaram-me chorar e eu chorei. Nada disso me satisfez e fugi da loucura dos prédios, do betão, do alcatrão e percorri veredas, caminhos errantes, trilhos mal marcados até que me perdi e caí no chão angustiada. Os castanheiros rodearam-me, cercaram-me, não me deixaram sair dali. “O que tens?”, sussurrava o vento na sua voz, “o que andas a fazer?”, murmurava a brisa, “para onde corres sem destino?”, acabaram por perguntar, mas eu na minha angústia não sabia o que dizer. Aos poucos os arbustos aproximaram-se, com o seu aroma tranquilizador sosseguei, os esquilos desceram das suas tocas, os coelhos aproximaram-se e cheiraram-me. “Tu és o inimigo”, declararam e fugiram. “Não, não sei quem sou”, tentei dizer, mas os animais afastaram-se com medo de mim menos as árvores que continuaram imóveis circundando-me. “Quem és e o que procuras?”. “Quem sou?”, pensei ainda mais angustiada, um resto de uma sociedade que não compreendo nem quero, como poderia explicar? “Sou o que procuro,”, disse-lhes num murmúrio, “não sou vento, nem terra, nem fogo e tão pouco água, sou um ente perdido num mundo proibido para mim”. “E o que procuras, então?”, insistiram. “Quero vida, quero noção, chega de razão, chega de solidão, chega de devorar o infinito, esse quero-o num vislumbre só para saber que existe”.




O verão estendeu a mão ao outono e este entrou calmamente sabendo que era a sua hora. Estranharam os transeuntes, os ausentes, os indiferentes. Estranharam todos que não olham para o céu onde o sol se encontra, onde se vê a lua ou a copa das árvores. Os pássaros, esses, já tinham feito a sua migração e ninguém reparou nisso. O Homem com a primeira chuva consultou o calendário, verificou os dados e pensou, sim, é outono, mas não espreitou pela janela nem olhou o horizonte. As raras árvores das cidades murmuraram entre si não compreendendo porque nem todos os animais estão sintonizados, porque andam desesperados e se vingam nos restantes, os outros, os esquecidos, os indefesos, os desprotegidos. Por isso calaram-se e secaram as suas raízes e deixaram o Homem, o único animal sobrevivente, viver a sua vida contente.





[Dali]


Não, o meu maior medo é dormir, deixar a loucura à solta, tão só, tão sozinha, tão desgovernada. E, enquanto eu fecho os olhos e esqueço o mundo este aparece ainda mais feroz. Não devia ser permitido, deveríamos ter um momento para nós, um momento de paz, um refúgio da loucura que nos envolve todos os dia. Mas não, o mundo persegue-me tal como a minha sombra o faz incansavelmente.



Os olhos abrem bem abertos, as luzes sufocam o corpo, o corpo mole, a cabeça gira, a vida entra em remoinho que mais ninguém vê, o início da loucura, o início do início. Não, não sou eu, são esses corpos que se movem livremente pensando que são senhores de si, resguardo-me, fujo, não os quero, essa liberdade que dizem serem a verdade, essa rebelião em nome das suas intenções que pensam serem puras. Não, fecho os olhos, escondo-me de novo, não à mentira, ao desengano, não à ignorância que deixei de suportar, não, irei dormir de novo, não, irei acordar e viver contra esta maré de loucos.

sábado, 12 de outubro de 2019




Quiseram-me aniquilar, apagar a minha existência porque os meus bosques são diferentes e eles contêm pássaros de todas as cores onde o Homem está interdito. Fechei horizontes dos outros, levantei espinhos e resguardei carvalhos antigos, teixos quase extintos, sobreiros onde não são violados, pinheiros altivos. As águias levantaram voo picado, os grifos rodearam a presa e zelaram por toda a natureza. Os lobos apareceram com a peeira, levantaram fronteiras, defenderam o território e não deixaram atravessar para além. Os andorinhões espalharam o alarme e as restantes árvores ficaram atentas. Mas o rio subiu, as águas revoltaram-se, espraiaram nos prados inundando o espaço ocupado nas aldeias afugentando todos os que restavam e eu deitei-me nas ervas descansada.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019




Sentes? Não sentes? O que sentes? A brisa, o sol, a copa das árvores, a erva daninha, a aborrecida da mosca, o que sentes? O que está para além de ti? Nada, dizes-me, porque para ti o mundo acabou entre prédios, entre horários, entre gente que se isola. Não os leve a mal, fazem o que tu fazes. Vem, pega na minha mão, caminharemos por caminhos secretos que só estarão escritos, vem e posso mostrar-te outra realidade, vem, queres vir ou ficar nesse mundo cinzento? Não queres vir, continuas no caminho da calçada, tens de sentir a tua escolha que não é a minha, a ti entrego-te a mão, mas não o meu espírito. Se vieres posso dar-te a conhecer as ervas, somente as ervas.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019




Construam castelos de areia e não esperem pelo mar, desenhem figuras no ar e não esperem pelo vento que leva as sementes para outro lugar. Porque se querem amor procurem dentro de vós, dentro dos outros, procurem para onde a brisa passa e as folhas se tocam.



Lança-te, acorda estonteado, nada desapareceu, a indiferença dos dias deu-te apenas um espaço de tempo para viveres um pouco mais e amanhã será igual como ontem, como ontem será igual ao teu amanhã e assim continuarás até que pares, que atravesses, que consigas encarar um castanheiro de duzentos e perguntar-lhes, como resististe? Não estive na mão dos Homens, responde-te, anda, senta-te à minha sombra, anda, sente os espinhos do meu fruto porque esses sempre os terás.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019


                                                              (Tela de Silvestre Raposo)



Talvez queiram aparar as minhas penas para me deformar, talvez queiram amarrar o meu bico para não gritar, talvez queiram amarrar as minhas asas para não voar, mas hei-de de compor-me, hei-de gritar, hei-de de voar e estenderei as minhas asas num voo magnifico onde apenas todos os pássaros me verão e esquecerei quem viver abaixo de mim.



N.A - Durante anos o meu avatar foi uma caturra, Silvestre Raposo pintou esta tela para mim e ofereceu-ma, a caturra representa o que sou, um pássaro livre, sim, com crista e refilona, com bico que magoa, com todos esses defeitos, um avatar que esteve comigo durante mais de 15 anos) 

quinta-feira, 3 de outubro de 2019




Hoje descobri que os Deuses ainda não nos abandonaram, esconderam-se de nós porque matámos toda a natureza, mas escondidos não esqueceram os seus filhos. Viajei até ao alto da montanha, abri os braços e entreguei-me à natureza. Não por mim, por todos os filhos que precisavam, pelos pássaros, pelas árvores, pelas ervas rebeldes que todos espezinham sem saberem o que fazem. Pelos esquilos travessos, os grifos que pairavam no ar, pelos rouxinóis, pelas Felosa-das-figueiras, por todos os pássaros que identifico e não os reconheço, por toda a flora que nasce, cresce, vive, fala e ninguém quer saber. Mas os Deuses sim e estiveram comigo.