quinta-feira, 30 de janeiro de 2020


[Dali]

A casa em obras, os pedreiros, o eletricista, os homens das janelas, todos vieram no mesmo dia. Lá em baixo o barulho de paredes a irem abaixo, de instrumentos barulhentos, pó, pedras, um caos que está a implicar comigo.  Deito-me debaixo do édredon tentando fugir, a cabeça lateja, o meu gato aconchega-se ao meu corpo, a divisão entre tudo acabado e o sossego. Acabo por sair da cama, desço, estou a mais, subo, sento-me, tento ouvir música e afastar a mente disto, desta confusão que parece não ter fim. A pilha de folhas por corrigir continua ao meu lado, os erros acumulados, e hoje não tenho concentração.

São todos simpáticos, os pedreiros, o eletricista, os homens das janelas. Não conheço todos os nomes, a minha memória perde-se, mas já me chamam pelo nome.

- Ó D. Teresa, vamos desligar a eletricidade.
- Ó D. Teresa, dá-me um café?

A casa está um caos como acontece quando há obras, não sei onde ponho as coisas; descanso o olhar nas oliveiras que me rodeiam e espero sempre não ter de ir à cidade abastecer-me, não quero ver mais gente. A minha civilização concentra-se neste portátil, num telemóvel e basta-me. Basta cinquenta anos de capital, de gente apressada, de gente com expressão triste e olheiras no rosto como provavelmente também eu andei.  

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020


[Gilles]

O negro do céu, a chuva persistente, nada lá fora é convidativo e recolho-me. O frio continua apesar da chuva, olho o monte de folhas que tenho para corrigir, insisto, desisto, procuro um meio fácil de não pensar, volto a considerar até que venho escrever estas linhas na esperança que o cinzento desapareça, na esperança de embalar e ressuscitar. Preencho o cérebro de pautas de música, vejo telas, procuro a arte que em mim não encontro e desespero com as mãos tão presas. O corpo encharcado em café, três voltas na sala, três vezes sentada, três vezes desesperada.
Tenho todo o sossego, tenho todo o espaço, por onde espreita o sol que me aquece as mãos e me devolve o sorriso? Onde caem os reflexos dos dias solarengos? E neste dia tão triste, neste dia tão acabrunhado não vejo mundos escondidos nem tão pouco consigo falar comigo. Fecham-se as portas vedando a chuva, as janelas quebrando o frio e levanto-me três fugindo dos mistérios da vida.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020





- Sou nova nisto.
A mulher nada disse, colocou seis pés de couve-galega num saco pequeno.
- Estas chegam? – Perguntou admirada.
Eram mais do que alguma vez plantara. Se pegassem, se crescessem já ficaria feliz.
- Sim. Tem enxadas?
Fui atrás dela, o armazém era um local quase místico cheio de produtos que desconhecia como se utilizavam, um templo para entrar na natureza.
- Tem de ser uma leve, não tenho muita força.
De novo a mulher não comentou, nem queria saber o que estaria a pensar de mim. Tinha estado a manhã a abrir um rego para semear ervilhas, tão pequeno, com uma enxada dos homens das obras, grande, pesada, os meus braços ainda sentiam.
- Que tal esta? – Perguntou-me enquanto mostrava uma mais maneirinha.
- Está ótima. Tem sementes de ervilha?
- Quais quer?
Disse-me três variedades, afinal não me tinha instruído completamente na internet.
- … e tem as rasteiras.
- Levo essas. – Declarei, não tinha ouvido nada acerca das outras. – Também preciso de adubo.
Paguei, saí com as minhas compras e fui para casa.
O pacote das sementes não era como os dos supermercados, abra, ponha no micro-ondas durante cinco minutos e já está, não, tentei relembrar o vídeo que tinha visto. Cinquenta anos de cidade dava nisto, ainda bem que aprendera em miúda, na quinta dos meus avós, a trabalhar com a enxada.
Fui encarar o rego, as plantas no saco, o adubo, as sementes. Estava de luvas, nem as minhas mãos eram adequadas para aquele trabalho. Tinha de começar por algum lado. E comecei, comecei pensando que não sabia se a maravilha da natureza se iria dar, coloquei as sementes, o adubo e tapei tudo, abri um buraco para cada pé da couve-galega, juntei adubo e no fim olhei de novo. Seria aquilo? Misture tudo e junte água? Talvez na primavera descobrirei.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020


Para ti, L., onde estejas,

Escrevo-te, mas não sei para que morada mandar, antes sabia, no tempo em que não te tinha negado. Tenho tentado não pensar em ti, mas as noites sucedem, uma atrás da outra como uma saga interminável onde estou só. Das nossas recordações sobraram apenas os teus olhos castanhos que me acompanhavam a cada passo que dava. Agora tropeço em todas as esquinas, caio e ergo-me, esfolo-me e curo, tenho tantas cicatrizes para te contar, um desejo de carinho por explorar.

O meu amor por ti nunca acabou, nem agora nem antes quando te mandei embora, na época de todos os medos. Para ti escrevi tantas páginas, encarnaste tantas personagens, vivi em todas elas ao teu lado mesmo sendo uma criação das minhas mãos. Sei que as leste, sei que as sentiste nessa terra distante onde estás, onde sempre estiveste, longe do toque dos nossos dedos, das carícias pela noite, da tua presença.

E escrevo-te, escrevo-te desesperada pedindo o teu regresso, acenderei uma vela para que saibas a minha nova morada, esperarei por ti em todas as madrugadas.

Teresa Durães

sábado, 11 de janeiro de 2020










De regresso onde passei uns tempos no ano passado. A casa igual, o sorriso igual, tudo igual menos o tempo. Não fosse a diferença do meu rosto, das minhas mãos, dos meus sonhos, quase tudo seria igual. Nunca nada é igual e eis-me onde outrora tive momentos tão aflitos, onde outrora tive tanto consolo e sei que tão cedo não virei. Não sei se a alfarrobeira me reconhece, mas os cães saltaram contentes à minha volta e quase a medo volto cá, foi há tão pouco tempo e foi há tanto. Tenho medo do passado tão perto, tenho medo das recordações e fecho-me a elas, quero apenas ver sorrisos, quero apenas a amizade e percorro o quintal tentando banir memórias que insistem, insistem e empurro-as com força até ficar cansada. Amanhã regressarei, sei que suspirarei e envergonho-me disso, os sorrisos são sempre os mesmos, a amizade sempre profunda e não têm culpa dos tropeções da minha vida.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020





- É uma videira, entrelaçavam entre árvores, era como se fazia antigamente.
Nada disso sabia, sabia-o perto de mim, o seu sorriso à medida que caminhávamos pelo terreno.
- Outra com a mesma função, ambas são antigas.
E via-o com ares conhecedores, com olhos que não tenho, ele que devia pertencer aqui.
- Vedas o terreno aqui e ali, tens uma macieira, um marmeleiro, uma cerejeira que foi podada violentamente.
Segui os seus passos pela terra, pela orvalhada, pelo caminho que ele fazia enquanto via cada árvore, cada poda a necessitar de ser feita, cada arranjo, cada possibilidade.
- Sim, quero ver a tua casa, a de lá de fora.