A casa das corujas, altiva, branca como as
habitantes da chaminé da cozinha. As memórias dos dias antigos onde em garoto
passava o longo verão com os avós. Representação da liberdade. Total. Devaneios
solitários por entre a vinha; os pés descalços do pequeno citadino que, quando
chegava, as pedras pequenas afiadas rasgavam a pele nova. A pouco e pouco já
nem se lembrava e o neto da aristocracia rural facilmente era confundido com os
outros: dos filhos dos jornaleiros que rodeavam as mães enquanto estas, de sol a sol, trabalhavam
a terra cantando para passar o tempo.
Pele tisnada ao fim de uns tempos, calções remendados, infiltrava-se nas
outras quintas para roubar fruta – tinha mais sabor, dizia. O da aventura de
ser livre nas tardes quentes onde a brisa não soprava e os adultos não o tinham
de baixo de olho.
Os da terra troçavam dele. Não tinha habilidade para trepar árvores,
diziam. Tão pouco distinguia rãs de sapos. O que percebia de pássaros? Por
acaso teria uma fisga com ele? Ele, num ataque de fúria, demonstrava a sua
valentia (que não tinha), mas recusava-se matar animais. Bárbaros. Como o que
faziam aos cães; mantinham-nos presos todos os dias à casota e isto o ano
inteiro. Coitados dos bichos que nem festas levavam. Os avós faziam o mesmo
alegando que serviam de guarda e para mais nada. Ele fechava as mãos em
violência, mas calava. Não se podia contrariar os mais velhos, tinham-lhe
ensinado. Sabiam mais sobre os mistérios da vida e ele apenas tinha de
aprender. Velhos, mas detentores do conhecimento e moral. Calava, mas roubava
carne da mesa às escondidas e dava ao infeliz animal. Festas e mais festas
durante a sua permanência. Durante a sua estadia nada lhe faltaria. Só não
podia passeá-lo, o avô avisara-o em tom severo lendo o pensamento que tentara
ocultar. Sem sucesso.
As noites deslumbravam-no. Estrelas e tantas estrelas. Todas
acompanhadas pelo cântico dos grilos. Ao longe a água que caía no tanque e um
ligeiro coaxar (de uma rã ou sapo?). Quando o calor era totalmente insuportável
passavam um pouco de tempo no alpendre a conversar. Os avós falavam sobre as
terras, as colheitas que em breve seriam feitas, as previsões para as vindimas.
Ele escutava atentamente como se percebesse a conversa dos adultos. De galinhas
ia entendendo; bastava dar-lhes de comer e no fim do dia verificar se tinham
ovos. Os coelhos estavam fechados durante a noite e dia; diziam que eram
felizes com um punhado de erva.
Ou não. Talvez assim não fosse. Nem os porcos no curral ou as vacas na
leitaria. Afinal os animais estavam encarcerados o tempo todo para a engorda
com exceção do cão que não passava de instrumento de guarda.
Pela primeira vez o garoto percebeu que a liberdade da casa das corujas
não passava de uma ilusão. Seriam todos os paraísos assim? Mesmo aquele que o
padre da aldeia tanto apregoava quando falava na ressurreição de Cristo? Não
sabia, afinal era novo demais para questões complicadas e foi deste modo que
modificou o seu comportamento.
Nunca mais andou descalço nem se misturou com os filhos dos jornaleiros.
O absurdo estava em querer ser quem não era. Tinham razão os miúdos do campo:
não era ligeiro, não conhecia os pássaros e jamais mataria um. Fez festas aos
coelhos, ao cão e alimentou as galinhas. Do porco e das vacas não se aproximou.
A verdade é que tinha medo, não estava acostumado.
Assim que soube que o vinham buscar para regressar à cidade aproximou-se
de todas as gaiolas. Num profundo pesar por ir de novo para o seu cativeiro,
abriu a porta dos coelhos e deixou-os sair. As do galinheiro. Pocilga.
Leitaria. E no fim, depois de ter a certeza de que nenhum animal se iria ferir,
o cão (que numa louca correria desapareceu dali para fora).
Nunca mais voltou à casa das corujas. O pai, indignado com o seu ato,
colocou-o de castigo. A mãe tentou que a pena fosse abrandada. Mas ele, ele que
os tinha soltado, com nada se importou. Escutou todas as recriminações, as
descrições do prejuízo causado. Aguentou os castigos infligidos.
Os anos passaram e esqueceu a
casa. Retomou os estudos, a vida da cidade, o seu próprio caminho. Mais tarde,
depois de passar os devaneios próprios da adolescência, acertou na namorada e
quase esteve para casar. Não se concretizou, afastou-se. Ainda viajou,
trabalhou, conheceu muitas realidades. Boas, más e outras que são simplesmente
indiferentes. Entretanto, o mundo deu as suas voltas sem querer saber das
tragédias humanas até que retornou à cidade onde por lá ficou a viver e a
trabalhar numa atitude solitária. Um homem novo habituado ao silêncio e ao pensamento.
Até ao dia em que foi ao funeral
dos avós.
Entrou na Casa das Corujas. Parecia estar tudo na mesma não fora a
procissão de gente que aparecera para dar o último adeus.
Estava um cão preso a uma corrente. Lembrou-se do que tinha feito quando
era miúdo. Sorriu, o tempo passara e não era o mesmo. A ilusão dos tempos,
prisões e liberdades transformaram-no, mas continuava a sentir-se num cativeiro
e tinha o mesmo olhar do animal encurralado, resignado, por mais sítios longínquos
que tivesse visitado.
Entrou na casa. O seu corpo esticara e os olhos apanhavam dimensões
diferentes das paredes brancas, os móveis mantinham o mesmo perfume e juraria
que os verões nas noites quentes teriam o mesmo som. Do coaxar das rãs, já
aprendera. Reparou que alguns dos miúdos de outrora estavam presentes com rosto
de homens. Apertou-lhes a mão em sinal de reconhecimento, mas acabou por ficar
quieto a um canto enquanto os seus pais e os tios faziam as honras da casa
herdada.
Era noite quando tudo terminou.
As tias que mal as reconhecia e a respetiva prole reuniram-se na mesa de jantar
onde os avós costumavam vigiar as suas maneiras muitos anos antes. A pouco e
pouco notou as vozes a subiram de tom até ao ponto do desentendimento total. Olhou
para a mãe, distante, em jeito de pergunta. Aproximou-se e apercebeu-se.
Começara o festim dos abutres. A herança, a disputa.
Saiu sem que ninguém desse por nada. Já tinha entrado no carro para
voltar a casa quando olhou para o cão. Estaria na lista da distribuição dos
pertences da herança? Será que ninguém se tinha lembrado que o animal estava a
sofrer também pela perda dos donos? Lentamente aproximou-se. O cão. cujo nome
desconhecia, ao vê-lo aproximar-se, não se mexeu. Ganiu apenas. Fez-lhe uma
festa e em troca recebeu uma lambidela. Retirou-lhe a corrente e colocou-o no
carro. Partiu.