sexta-feira, 31 de maio de 2019


[Júlio Pomar]

Não quero mais ouvir essa palavra tão gasta que é o amor, rasga as frases proferidas por ti porque me mentiste. Diz-me apenas que foste embora para a terra dos desaparecidos.
Nas estrelas da noite pousavas para mim, deleitava-me ser espectadora desse corpo que era teu. Nunca to disse, nunca existia tempo para sermos. Das vezes em que demos as mãos e entrelaçamos os dedos, lembras-te? Tão fugidio, tão aquém de todo o amor que inventaste para mim e que acreditei ser possível.
Não são os céus que nos ensinam o caminho e tu eras o meu. Esperei a noite toda e não apareceste. Entreguei-me ao voo da coruja branca que habita na minha chaminé. Impagável, caça todas as noites, repeti os seus gestos, consumi roedores, animais notívagos, devorei sombras para descobrir que essa palavra tão gasta não existia na escuridão. Até que parei.
Deitei-me debaixo de uma árvore no meio das ervas. A orvalhada infiltrava-se nos meus ossos cansados de tantos gestos desesperados. Tinha perseguido fantasmas, violado a minha sanidade. Neguei a existência desse malfadado estado, não passava dum malabarismo de reflexos imaginários. Não, não me fales mais dos laços que tínhamos encontrado.
O vento passou, os girassóis cresceram, despontei para a corrente do rio ladeado de amieiros. Os pés descalços que pisavam a terra sentiram o vibrar do mundo. À minha volta apareceu o povo dos bosques, nas suas mãos as insígnias dos Deuses antigos.
Não sei o que é o amor, mas deixei-me ir na paz da floresta.

1 comentário:

  1. Um texto dirigido a alguém que foi amado…
    Gostei da música das sílabas.
    "O vento passou, os girassóis cresceram, despontei para a corrente do rio ladeado de amieiros. Os pés descalços que pisavam a terra sentiram o vibrar do mundo. À minha volta apareceu o povo dos bosques, nas suas mãos as insígnias dos Deuses antigos." Tão belo!
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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