domingo, 24 de maio de 2020





Não consigo imaginar o que é para ti os dias de hoje, talvez se recordar os tempos idos, mas nada é igual. Tens vinte e dois anos e eu cinquenta, tens uma vida para conquistar e eu dela já a fiz a minha.
Um dia disseram-te, não saias à rua, não namores, não estejas com os teus amigos. Ainda impuseram, não vás ao ginásio onde praticavas para tentar ir para a Faculdade de Desporto. Tudo de um dia para outro, ou talvez não tenha sido assim, mas com a tua idade não há outra forma de se ver a vida.
Choravas ao telefone, “acabaram com a minha!” e eu não tinha palavras para te responder porque sim, acabaram de um momento para o outro o teu desejo de singrar na vida, o que se faz na tua idade.
- Anda, vem para ao pé de mim. – Pedia-te mesmo sabendo que vivo numa terra sem nome num Portugal desconhecido onde não há vírus nem máscaras nem distâncias.
- Anda, aqui podes correr, aqui podes ser o que eras antes.
Mas não quiseste e ficaste na tua casa sozinha. Claro que sabia que não era bem assim, as tuas amigas apareciam e ias ter com elas. Não havia confinamento nessa cidade onde vives porque o teu corpo é demasiado jovem para poder aceitar as exceções tão raras na vida – sim, nunca vivi nada assim.
Sabes que onde moro somente há oliveiras e trabalho na horta e tu não querias, querias a existência antiga como se fosse possível parar o mundo só para que avançasses.
- Mãe, quando isto acaba? Para o mês que vem?
Não respondia, que poderia dizer eu que só semeava favas e de nada disso percebia exceto que os dados como certos não os eram.
- Mãe, como vou para a faculdade assim? Como treino, como estudo?
Continuava muda, eu que tanto te queria dizer, aconchegar-te no meu colo onde não cabes e falar – há de passar.
Há de passar quando? Ninguém sabe e a minha filha de 22 anos precisa dessas respostas urgentes porque é o presente dela, não um futuro estranho ou um passado de tanta aniquilação da natureza que a vão fazer compreender.
- Mãe, os meus músculos estão-se a perder, não consigo estudar, o que faço?
O que fazes? Vai para a rua e corre, faz com que os teus passos marquem a diferença, mas fá-lo, por ti, pela tua geração confusa com o que se passa. Sim, afinal o que se passa? A mãe natureza descobriu que estamos a mais e temos de aniquilar alguns?
- Mãe, é Páscoa, dizem que não posso sair! – Chorava de novo.
- Não te importes, sai à mesma, vai correr, vai fazer exercício, vai fazer com que não enlouqueças nestes diz estranhos . Esteve cá uma amiga minha e sentámos-nos a dois metros de distância.
Nada disso era permitido, mas eu fingia que não ouvia, fingia que tudo o que ela fazia estava correto, mas só repetia.
- Tem cuidado, queres ser atleta, o Covid pode danificar os pulmões.
- Mãe? Mãe? O que faço então? – Continuava a chorar.
Teresa Durães

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Querem-me presa e presa fico, querem-me como os outro e eu tento. Querem roubar a minha alma e cem vezes o farão porque não consigo lidar com ela. Querem-me diferente? Diferente sou , mas não abjeto, nem papel, antes quem vive como vive e eu vivo assim. Somos seres diferentes e na diferença somos iguais, e na diferença somos todos humanos. Ou espero que sim.

Teresa Durães


(Grifo, Teresa Durães)




Vive, vive apenas, amanhã é outro dia e nas nossas máscaras iremos ver diferente voos de aves. Elas são livres, finalmente, nós não. E merecemos tudo isto.




quarta-feira, 20 de maio de 2020


Ser-se gente, ser-se alma que divaga, ser-se uma pedra que não se move , mas vê todas as ações, todos os caminhos tomados, todas as pétalas caídas. Esperar o amor perdido nos paralelos do universo em todos os caminhos dos ponteiros dos relógios que deixaram de existir, esperar pacientemente enquanto as mãos trabalham e não esquecem o seu fim, enquanto vivos, enquanto conscientes. Abram-se as janelas pela manhã e deixem entrar o dia e com ele os raios de sol que nos levarão ao nosso fim, seja breve, seja eterno, seja consciente ou não. Mas abram as cortinas e deixem a casa respirar o dia porque o dia de hoje é mais importante do que o de amanhã.

terça-feira, 19 de maio de 2020






Trago os dias em caixinhas coloridas para repousar o cansaço. O sol fraco a aquecer os braços, a brisa roça a face e tantas histórias a empacotar.
Olhaste-me pedindo respostas que não conseguia dar, disseste que me amavas e que não compreendias porque me afastava. Olhei para o horizonte, para o mundo onde as vozes estavam caladas e as ruas não existiam. Sei que nada tens a ver com a culpa do Homem ou com a minha loucura, só procuro aquele bosque onde consiga passear e sentar-me numa pedra para sentir a vida. Tenho de ir para a terra do silêncio, para onde os pensamentos corram livres, chegar a casa, por fim.
Não te disse, fiquei silenciosa e esperei as palavras amargas onde tinhas razão. Eu queria, sabias? Queria saber amar, poder estar nesta terra e assentar, chama-me o vento e não consigo descansar enquanto não for, diz que estou mesmo louca, mas não consigo ficar. E enquanto não percorrer as árvores, as folhas, as raízes nunca serei completa. Sabias que era assim?

Gratuito para download na loja kobo.com





Fumo um cigarro. A vida não é uma espera, mas eu espero, espero o vazio que antecede a explosão. Tudo menos o corpo é eterno. O tempo dos Deuses quase findou mesmo talhando as suas 7 espadas acima.
Sei que estás comigo. Não no bosque, na clareira onde nos sentávamos à volta da fogueira, tu de capuz, sorridente, enquanto eu apanho lenha para não deixar o lume esmorecer. Estás nas palavras que escrevo, nos dedos que acendem uma vela, nas paredes brancas que falam comigo.
Primeiro foi a escuridão onde divagavas em espírito, depois encontrei-te onde te vivi. Duvidei-te e separei-me. Tu nunca o fizeste. Porque erramos tanto? Forjam os Deuses as suas 7 espadas para desbravar a nossa existência, criam os cumes para podermos alcançar mais longe, entregam-nos a sua magia para aliviar as nossas vidas.
Desbaratei tudo. Tu, os cumes, a magia. As árvores, os prados, a brisa. As marés. Como preencher-me de novo, arrecadar as verdades e livrar-me do lastro que é a nossa contínua existência? Voltar a reconhecer as 7 espadas acima que os Deuses ainda empunham silenciosamente na nossa presença, correr feliz nas florestas barulhentas, explorar grutas onde se escondem donzelas divinas, voltar a ser uno com as estrelas que escondem histórias de amores perdidos.
Agarro a minha cadela. Temos tanto para dar uma à outra. Temos esta vida, temos todas as vidas juntas, todos os universos paralelos e os que hão-de vir. Como tu, connosco, não aqui, para além de todos os ventos, das raízes das florestas, das serras onde vemos os rios a brincar nos vales escondidos, longe das bolotas caídas das azinheiras e dos ouriços das castanhas que doem nos dedos.
Quero. Despojar-me deste corpo incómodo quando a lua se aproximar, largar o espírito 7 vezes acima das coisas vivas, reviver os Deuses antigos e viver a noite onde te encontras para mim.

Teresa Durães in "7 espadas acima", gratuito para download na loja Kobo.com

domingo, 17 de maio de 2020

Dia Internacional Contra a Homofobia





Sim, enquanto sussurro-te, 
enquanto encosto os meus lábios suavemente no teu pescoço 
ouço-os a conspurcar
todos os nossos gestos,
- Beijavam-se desenfreadas
aquelas cabras com o cio. Putas!
Toco-te com gentileza, 
tenho medo que desapareças 
no meio de tanto ódio,
tenho medo do medo que tens.
Dizem, sois livres,
tendes o vosso arco-íris,
a vossa bandeira, 
o casamento.
Não amor, dá-me a mão, 
não chores, 
não, 
não passearemos de mão dada pela rua 
nem apregoarás a nossa união.
Não teremos filhos, mas caminharemos
nas vielas secretas de todas as cidades
onde te poderei beijar, respirar e estar. 

Teresa Durães in "Liberdade", Chiado Editora


sexta-feira, 15 de maio de 2020

Quando eu crescer não quero aviões para brincar, prefiro fisgas para os pássaros, sei que não acerto em nenhum, mas os aviões matam muitos. E se poder desejar o quero ser quando for grande talvez queira ser astronauta, talvez a única profissão possível porque já ouvi dizer quer os glaciares derretem, o mar vai subir e ninguém sabe ao acerto como vai sobreviver. Hoje usam máscaras, amanhã escafandros.

segunda-feira, 11 de maio de 2020



Antigamente os Lusitanos não eram Lusitanos, antes várias tribos que não se davam entre si e têm nomes muito difíceis de pronunciar. Quem os chamou de tal foram os Romanos que levaram imenso tempo para conquistar a Lusitânia porque as tribos uniram-se contra um inimigo comum. Segundo várias descrições, incluindo d Martinho de Dume, sec. VI e quem fez o Primeiro Concílio de Braga e Cristianizou os Suevos que nos ocupavam, os Lusitanos eram pessoas alegres, faziam festas sobre tudo. Já tinham vinho, mas bebiam cerveja, as mulheres podiam ser guerreiras igualmente. Eram ferozes, bons a cavalo, o Lusitano, hospitaleiros e vestiam com cores garridas.

Acreditavam em vários Deuses havendo uns principais, outros variavam de região para região e viviam em castros, castros esses que uns quantos da Gallecia (Minho e Galiza) ainda duraram até ao sec. XIX e lutaram contra as tribos Francas onde perderam e assim se chegou ao primeiro rei e Portugal.
Hoje vejo pouco neles, ainda há hospitalidade e os inimigos invisíveis a combater; o adepto de outro clube de futebol, de outra região, de religião, de cor, xenofobia, escolha sexual. As tribos deixaram de ser tribos para serem grupos que até se podem cruzar entre si e ninguém de conhece. O clube dos jipes, das motas, de tudo. Parece que o conhecimento superficial é o mais suportável.
Hoje também se bebe cerveja e só há pouco tempo a mulher pôde ser guerreira, mas não por nosso feito. De resto, parece-me que se perdeu o sorriso, a vontade de sermos unidos nem que seja através da força, olhamos para nós como povo e parece que sentimos complexos, nós uma raça tão antiga e tão combativa.

(fotografia da Casa de Sarmento)

sexta-feira, 8 de maio de 2020







Ontem era ontem e decidi que não seria mais hoje. Peguei na enxada, esperei que as minhas costas aguentassem, abri um buraco para plantar um castanheiro. Coloquei as suas raízes no centro e com as mãos cobri-as, mãos na terra, mãos na vida
Não sei se o irei ver crescer, será o meu testemunho para as restantes árvores, será a minha homenagem aos Deuses que me acompanham. Morrem os bosques aos poucos, morre a minha existência com eles, os Genii[1] fogem para longe e não regressarão. Os Deuses já retornaram às suas moradas e não poderei senti-los entre os ramos, entre as ervas. Sento-me no chão, queria tudo como antes, no tempo em que passeava na quinta dos meus avós onde o terror era uma tempestade com os relâmpagos a iluminarem as serras e os trovões a assustarem-me apesar de não conseguir tirar os olhos de tamanha demonstração de força da natureza..
Mas o ontem não se repete e planto um castanheiro na esperança de que um dia haja alguém como eu que adore as árvores, a sua sombra, o tronco rugoso, a vida que emana, e sente-se encostado a ela alheia a quem plantou e amou, mas apenas ouvindo as suas histórias da vida que atravessou."



[1] NA – Divindade Genii - dos locais, montanhas







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quinta-feira, 7 de maio de 2020

"Era tudo novo, as divisões, as paredes, as portas e as janelas. O quintal também. As pessoas, a temperatura. Tudo novo. Às paredes tinha de se habituar, ao espaço, aos corredores. Às oliveiras lá fora. Tudo novo. E seria ainda por muito mais tempo, a gente, os costumes, as estações do ano. Até ao frio que entranhava nos ossos. Mas sempre fora assim desde cedo, das vezes que se mudara, os hábitos que teria de criar.
A solidão não era um contratempo, sempre estivera habituada a si e a si, ao seu espaço interior cuja dimensão desconhecia. Se quisesse falar estariam os gatos, os cães, a música para desafinar porque nunca soube cantar e também conversava sozinha, hábito desde pequena.
Os seus heróis tinha-os consigo, os livros, os autores, os filósofos que ainda tanto desconhecia, um campo a desbravar.
Só não sabia plantar salsa."

sábado, 2 de maio de 2020







Lá fora está escuro, mas não está frio. Os meus cães saúdam-me como sempre, a Frecha segue-me mesmo contrariada, quer comer a comida do Quim, mas não pode ser. O Quim empata mesmo tendo passado fome, já a  cadela não perde tempo, inteligente, bondosa, é meiga, é quem nunca sonhei e não a queriam adotar porque tem um olho de cada cor, pois que tenha, deita-se para ter festas na barriga, vai para a sombra, cava buracos porque assim é mais fresco,  eu queria na minha casa, na minha cama, mas tenho três gatos, principalmente um que é um terror. Não sei como os conjugar, eles e os outros ”les uns et les autre”, são animais e como animais comportam-se e está tudo certo, mas queria adormecer junto à Frecha, aninhar-me e desejar-lhe uma boa noite.





* A Frecha teve um dono que morreu, foi abandonada, foi para um canil onde teve filhotes que morreram, desistiu de viver até que foi resgatada. A Frecha é uma cadela cheia de vida, adora festas, olha para mim quando faço coisas e nem quero pensar o que pensa sobre mim porque  ela compreende melhor a vida do que eu.A Frecha tem um olho de cada cor e por isso ninguém a quis adotar. Pois digo ao resto do mundo, não sabem o que fazem.