Esta noite olhei a lua e com ela todos os reflexos no mundo
dos Homens. Precisei de me afastar, a guerra continua, ambos os lados se
gladiam, uns tentam superar os outros e não param para conversar. Bons homens
morreram, mulheres ficaram viúvas e crianças sem pais. Mas a guerra vai
continuar enquanto eu olho a lua e decido se desço a encosta e entro na
refrega. Gostava de saber por quem luto e se as suas razões são as minhas, mas
no meio de tanta mortandade todos tentamos apenas estar vivos.
"O fantástico não está fora do real, mas no sítio do real que de tão visível não se vê.", Vergílio Ferreira
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
domingo, 18 de agosto de 2019
Era um verão quente e já todas as espigas de milho tinham sido
cortadas. Esperávamos a festa da desfolhada, um beijo para quem encontrasse o
milho-rei, um futuro promissor. Esperava-se à noite o folclore, mas as o milho
tinha de ser debulhado na eira onde em redor nos encontrávamos. Os pés
livres dos sapatos apertados, as saias rodadas de qualquer maneira, contavam-se
anedotas enquanto a pele era descascada. Quem teria o milho-rei e o seu amante?
Riamo-nos enquanto os homens estavam nas tabernas, riamo-nos da sua
imbecilidade, todas mulheres, todas donas do seu destino. Riamo-nos porque
éramos donas dos nossos destinos mesmo sem o milho-rei.
sábado, 17 de agosto de 2019
[Fotografia de Luís Suart]
Era como se tudo se tivesse passado ontem ou tinha mesmo. Os passos eram iguais, as perguntas, as frases, os sorrisos. Por isso não consegui ouvir mais, saí dali, fugi dali, corri dali. O que me ofereciam? Flores arrancadas do solo, o prado de sempre como se fosse ficar imutável. Esqueceram-se das máquinas escondidas que um dia entrarão mesmo que lá não estejam. Esqueceram-se que outrora éramos terra e vida, árvores e vento, água e sede, fogo e luz.
segunda-feira, 12 de agosto de 2019
Ontem era ontem e decidi que não seria mais hoje. Peguei na
enxada, esperei que as minhas costas aguentassem, eu tão citadina, abri um
buraco para plantar um castanheiro. Não sei se o irei ver crescer na minha
vida, será o meu testemunho para as restantes árvores, será a minha homenagem
aos Deuses que me acompanham. Morrem os bosques aos poucos, morre a minha
existência com eles, os Dii fogem para longe, longe e não regressarão. Os
Deuses retornarão às suas moradas e não poderei senti-los entre os ramos, entre
as ervas. Sento-me no chão, queria tudo como dantes, no tempo em que passeava
na quinta dos meus avós e o mais aterrador era uma tempestade. Mas o ontem
não se repete e eu planto um castanheiro na esperança de tudo se remediar.
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
Onde esconderam as estrelas?
Não as vejo,
perderam-se no negro do céu,
abismo da noite.
Não as vejo,
perderam-se no negro do céu,
abismo da noite.
Disseste-me que não seria assim,
acreditei mas não as vejo.
acreditei mas não as vejo.
Sento-me debaixo de uma árvore
ouvindo o breve
murmurar das folhas
negras contra o negro.
ouvindo o breve
murmurar das folhas
negras contra o negro.
Onde colocaste as minhas estrelas
que não as vejo?
que não as vejo?
Outrora iluminavam caminhos,
mostravam regatos noturnos,
olhos de aves
que observavam o meu olhar.
mostravam regatos noturnos,
olhos de aves
que observavam o meu olhar.
Outrora vigiavam-me,
vigias-me tu, dizes,
não te vejo.
vigias-me tu, dizes,
não te vejo.
Nem vejo as estrelas da noite
debaixo da árvore onde me sento
a ouvir as aves que não vejo
no murmurar das folhas
que se movem negras contra o negro
do abismo da noite.
debaixo da árvore onde me sento
a ouvir as aves que não vejo
no murmurar das folhas
que se movem negras contra o negro
do abismo da noite.
Disseste-me que não seria assim.
Teresa Durães in "Passos sem rasto"
quarta-feira, 7 de agosto de 2019
(o vídeo seleccionado foi pela música, uma música dos rebeldes italianos durante a II guerra Mundial, agora utilizado na série La casa de papel, uma música dos rebeldes que vão para a guerra e que dão a sua vida por uma causa. Bella Ciao)
Acordei dum sonho, não sabia onde estava, a água alagava
tudo, a gente gritava e fugia e eu longe na serra impotente. Foram vozes que
ouviram o perigo, mas calaram-se, foi gente que soube e calou-se. Tentei
chamá-los, venham, venham por aqui, mas era tarde de mais, o mar levava-os, a água
subia e tudo consumia. O tempo, inclemente, devorava o resto dos Homens que
fugiam, tinha passado o tempo do arrependimento. Não, não culpem os Deuses, não
culpem ninguém se não vós próprios porque enquanto viviam as vossas vidas
facilitadas o mundo gritava e ninguém o quis ouvir.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
[Miró]
Não quis pensar mais em ti, arrumei as malas e parti, não
conseguia sentir as marés, fugiam de mim todas as luas. Perdia-me e precisava
de devolver aos olhos os caminhos de outrora. Pousei as malas no chão numa rua
qualquer, chovia e não me importei, tudo tinha de ser desmontado, ignorei o
espaço, a noite, a chuva. Deixei as malas na rua, corri livre, corri até ao Cais
das Colunas onde gritei, cheguei!
domingo, 4 de agosto de 2019
[Cezanne]
Se quando acordei não sabia para onde ia, porque respirei a
manhã, experimentei o aroma a rosmaninho e senti-me mais uma vez viva, não
queria dizer que estava certa em decidir ir por ali, mas fui. Peguei em tudo,
comecei a caminhar sem direção nem destino, o que procurava sabia, onde estava
desconhecia. Percorri os caminhos dos castanheiros até encontrar uma clareira
com um lago. Sentei-me e mergulhei ao de leve com os dedos, as ninfas estariam
por ali, só queria lhes perguntar por onde andava o meu amado. Perto, perto,
responderam-me, tem paciência e paciência tenho tido tanto tempo ido. Mas
sempre esperarei porque virá, isso sei.
sábado, 3 de agosto de 2019
[Fotografia de Luís Stuart]
Acordei numa madrugada fria, olhei para o vazio das mãos,
tantas vezes bloqueadas, tantas esquecidas. Arregacei mangas, saí para os
bosques enevoados, saí para recolher o dia. Enquanto desenhava na terra misteriosos
círculos que nem sabia de onde vinham, cantavam a carriça, o melro-azul, o
cruza-bico. Sentei-me com a brisa, queria sentir as raízes, as ervas livres. E fui
floresta, caminho, gente e regressei finalmente.
quinta-feira, 1 de agosto de 2019
Não sei quando aconteceu, as árvores chamaram-me, os cumes
das serras gritaram e eu tão impotente fui. Fui e levei os pássaros, fui e
levei os lobos, os grifos, todos o animais que queriam ir comigo. Fugimos para os
bosques onde não nos encontrariam, outra terra longe desta, longe dos olhos dos
predadores, longe do Ser Humano, longe de tudo. Fugimos e escondemo-nos. Até
quando aguentaremos? Até quando seremos perseguidos? Dizem os pássaros, as raposas,
as galinholas, os faisões e com eles os teixos em extinção. Até quando
conseguimos estar escondidos? Deixei
cair a mochila, não os posso assegurar, regra dos Homens, regra dos Seres
Humanos, eu que pertenço a eles.
Peguei em pedaços de pau, juntei-lhes ervas silvestres, não colhi flores nem nada que daria fruto. Acendi uma fogueira, inspirei, alarguei o círculo para os presentes. Estávamos todos, todos os que queríamos regressar, reviver, viver, sobreviver. Os antigos que conheciam, os novos que procuravam, os que simplesmente estavam. Unimo-nos como nunca antes o fizemos, unimo-nos nesta procura pela vida, pela existência, pela presença. E seremos mais do que nós, seremos para vós, para o que virá, faremos tudo para parar, seremos o instrumento que falta sem poderes, mas estaremos por todos mesmo que todos nos ignorem.